Luiz Alberto dos Santos*
Em 6 de março de 2024, a imprensa noticiou que o Governo Federal estaria estudando a concessão de “reajuste nominal para os servidores federais”.
A adoção desse “reajuste nominal” dependeria da ocorrência de aumento da arrecadação que permita o aumento do limite de despesas do Poder Executivo ainda em 2024.
Segundo o art. 14 da Lei Complementar nº 200, de 2023 – Novo Regime Fiscal Sustentável, no exercício financeiro de 2024, o limite do Poder Executivo poderá ser ampliado por crédito suplementar, após a segunda avaliação bimestral de receitas e despesas primárias, em montante decorrente da aplicação de índice equivalente à diferença entre 70% do crescimento real da receita para 2024 estimado nessa avaliação em comparação com a receita arrecadada em 2023 e o índice calculado para fins do crescimento real do limite da despesa primária do Poder Executivo estabelecido na lei orçamentária anual para 2024.
Esse aumento extraordinário do “limite” ou teto de despesas, considerando-se que o aumento do limite de despesas aprovado para 2024 foi de apenas 4,91%, considerando o IPCA de julho de 2022 a junho de 2023 de 3,16% e um aumento real de 1,7%, não pode ser maior que o necessário para que o aumento real seja 2,5% além da correção pelo IPCA de julho/22 a julho/23, e também não poderá ser superior a 0,25%do PIB de 2023 (R$ 27,15 bilhões).
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Se a estimativa de receitas, portanto, permitir o aumento do teto, esse aumento seria da ordem de, aproximadamente, R$ 15,57 bilhões, mas esse aumento seria disputado com todas as demais demandas do Executivo, e em um contexto de necessidade de contenção da despesa primária, a fim de garantir a redução do déficit em 2024.
O Executivo alegou, nos termos da Mensagem Presidencial enviada ao Congresso em 31.08.2023, que não haveria revisão geral em 2024 nos termos previstos no art. 37, X da Constituição, pois “o impacto decorrente de eventual concessão da revisão geral anual aos agentes públicos federais, considerando um suposto reajuste linear de 1%, significa um crescimento na folha de pagamento no valor de R$ R$ 3,46 bilhões.”
Assim, afirmou que “por mais legítimo que seja o pleito, se revelaria uma medida imprudente, haja vista o cenário fiscal restritivo para 2024, mesmo com o advento do Regime Fiscal Sustentável.”
De fato, o cenário fiscal requer cautela, e as limitações estabelecidas pelo Novo Regime Fiscal Sustentável são significativas.
Segundo o Tribunal de Contas da União, a meta fiscal prevista para o ano de 2024 não será atingida. Apontando superestimativa de receitas, o TCU considera que haveria um déficit de R$ 55 bilhões em 2024, ou seja, quase o dobro do limite máximo admitido pela Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, por sua vez, aponta um déficit da ordem de 0,9% do PIB em 2024, ou de R$ 109,2 bilhões, portanto descumprindo a meta fixada pela LDO 2024 de um déficit zero, mesmo com a margem de tolerância admitida de um déficit de 28,8 bilhões ou 0,25% do PIB[1].
Há, inclusive, estimativa da Consultoria de Orçamentos da Câmara dos Deputados[2] que indica que o Governo poderá ter que recorrer ao contingenciamento de R$ 41 bilhões, de maneira a observar o déficit máximo admitido para o presente exercício (R$ 28,8 bilhões ou 0,25% do PIB). Ou seja: não haveria espaço para aumento da despesa, e, ainda, o Governo teria que reduzir os gastos já autorizados ao longo do ano de 2024.
Assim, mesmo que haja aumento expressivo da arrecadação, ele poderá não ser nem suficiente, nem destinado a aumento da despesa com pessoal. As prioridades do atual Governo estão focadas, além do cumprimento da meta fiscal, em aumentar despesas com benefícios sociais, educação, saúde, segurança e, sobretudo, investimentos, no âmbito do “Novo PAC”.
Nesse contexto, vem à lume a hipótese de que o Governo poderia, em lugar de conceder revisão geral, ou mesmo reestruturações remuneratórias – que são reivindicadas por dezenas de entidades sindicais, na perspectiva de, por meio de “mesas setoriais temporárias”, obter a recuperação de perdas passadas – conceder um “aumento” ou “reajuste nominal” aos servidores federais.
Na hipótese de ser concedido esse tipo de “vantagem” a título de aumento de remuneração, ele deverá situar-se no limite de aumento de despesa com pessoal estabelecido pelo Anexo V da Lei Orçamentária Anual, que prevê para esse fim apenas R$ 587.293.393, em 2024, no Poder Executivo, para o atendimento de PLs relativos à reestruturação e/ou aumento de remuneração de cargos, funções e carreiras no âmbito do Poder Executivo. Nos demais Poderes, não há previsão de limite para essa finalidade.
Desse total, porém, R$ 139.268.537 já foram consumidos com as medidas adotadas pela Medida Provisória nº 1.203, de 2023, que concedeu realistes para FUNAI, ANM, Analistas de Tecnologia da Informação, Analistas Técnicos de Políticas Sociais e pessoal da Defesa Civil. O restante deve estar já comprometido, em boa parte ou na totalidade, com o reajuste já negociado com os servidores da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal. A ausência de divulgação, pelo Governo, dos termos de acordo e estimativas de impacto desse reajuste, porém, impede uma análise mais acurada.
Embora nenhuma minuta de projeto de lei tenha sido apresentada, pode-se estimar que a solução ventilada pelo Executivo seria similar à que já foi, no passado, adotada sob a denominação de “abono salarial”.
Em 1987, por meio do Decreto-Lei nº 2.352, de 7 de agosto, o Executivo concedeu abono salarial a todos os trabalhadores que percebiam salário mensal igual ou inferior a CZ$ 9.599,60. O abono foi concedido no valor de CZ$ 250,00 (duzentos e cinquenta cruzados) e, segundo afirmação do Chefe do Executivo na ocasião, embora fosse um valor pequeno para os trabalhadores de maior renda, representava um aumento relevante para os que percebiam o salário-mínimo.
O referido abono foi incorporado aos salários, ou seja, foi pago como “abono” no primeiro mês de vigência, mas passou a integrar o salário a partir de setembro de 1987.
Em 1990, por meio da Medida Provisória nº 199, de 26 de julho, foi concedido aos trabalhadores, no mês de agosto de 1990, um abono no valor de Cr$ 3.000,00 (três mil cruzeiros), desde que o valor do salário referente ao mês de agosto de 1990, somado ao valor do abono concedido, não ultrapassasse a Cr$ 26.017,30. Esse abono, que foi estendido aos servidores públicos federais, não seria incorporado aos salários, nem sujeito a quaisquer incidências de caráter tributário ou previdenciário.
Em 1991, a Lei nº 8.178, de 1º de março, concedeu, a partir dessa data, abono, que não foi estendido aos servidores públicos civis e militares da Administração Pública Federal, direta, autárquica e fundacional, em valores de Cr$3.000,00 (três mil cruzeiros), além da variação da inflação ferida pelo custo da cesta básica.
Em 2003, nos termos da Lei nº 10.698, de 2 de julho, foi instituído, em caráter geral, para os servidores ativos e inativos e pensionistas dos 3 Poderes, a partir de 1º de maio de 2003, vantagem pecuniária individual no valor de R$ 59,87 (cinquenta e nove reais e oitenta e sete centavos).
Essa solução, então, foi adotada para conceder – sem o caráter da revisão geral anual de 1%, concedida em janeiro de 2003 – reajuste diferenciado para os servidores de menor renda. Para esses servidores, em 2003, o reajuste de 1%, concedido na data-base, foi ampliado em 13,23%. Contudo, para os servidores de maior renda, o impacto foi bem inferior a esse percentual. Para um Auditor-Fiscal da Receita Federal em final de Carreira, por exemplo, que percebia, então, R$ 7.649,04, o “abono” de R$ 59,87 representou um acréscimo de apenas 0,77% na remuneração já reajustada em 1%.
Desde então, em vários Estados e Municípios, a figura do “abono” como forma de concessão de reajuste para servidores públicos tem sido adotada com frequência.
Assim, a solução ora ventilada não é inédita, e nem, tampouco, defensável, à luz do disposto no art. 37, X da Constituição e do próprio significado da “revisão geral anual, sem distinção de índices” por ele assegurada.
Embora tenha efeito pecuniário, e deva ter o mesmo caráter amplo da própria revisão geral anual – como foi entendido em 1991 e em 2003 – a concessão de um “abono” ou vantagem pecuniária a título de “reajuste nominal” encontra obstáculo, atualmente, no art. 39, § 4º da CF, que estabelece que “o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. O regime de subsídio é de observância obrigatória, ainda, para os magistrados, membros do ministério Público, carreiras jurídicas (AGU, PGFN e Defensoria Pública), policiais federais e rodoviários federais e policiais penais. Além disso, nos termos do § 8º do art. 39 da CF, a remuneração dos servidores públicos organizados em carreira pode ser fixada nos termos do § 4º. Atualmente, grande número de carreiras exclusivas de Estado são remuneradas por meio de subsídio.
Corolário dessa situação é que, não sendo possível o acréscimo de qualquer outra espécie remuneratória, a esses servidores e agentes públicos não poderia ser estendido o “reajuste nominal” na forma de abono ou qualquer outra denominação que venha a ser empregada.
Quanto aos impactos fiscais da medida, apenas no Poder Executivo ela teria que contemplar 1.141.341 servidores ativos, aposentados e instituidores de pensão civis, sem computar os servidores do Poder Judiciário, MPU e Poder Legislativo, que também devem fazer jus a esse “reajuste”. Esse dado não considera os servidores contratados temporariamente.
Dado esse quantitativo, ter-se-ia os seguintes impactos mensais e anual, segundo o valor a ser estabelecido e considerando a sua implementação a partir de maio de 2024:
QUANT. BENEFICIÁRIOS | ABONO R$ | DESPESA MENSAL R$ | DESPESA ANUAL – A PARTIR DE 05/2024 – R$ |
1.141.341 | 100,00 | 114.134.100 | 1.065.247.795,53 |
1.141.341 | 200,00 | 228.268.200 | 2.130.495.591,06 |
1.141.341 | 300,00 | 342.402.300 | 3.195.743.386,59 |
1.141.341 | 400,00 | 456.536.400 | 4.260.991.182,12 |
1.141.341 | 500,00 | 570.670.500 | 5.326.238.977,65 |
1.141.341 | 750,00 | 856.005.750 | 7.989.358.466,48 |
1.141.341 | 1.000,00 | 1.141.341.000 | 10.652.477.955,30 |
Esse abono ou “reajuste nominal” passará a integrar as remunerações e proventos, sendo, assim, protegido pela garantia da irredutibilidade.
E, como parcela remuneratória, deverá ser, também, base de cálculo de tributos e contribuição previdenciária. Nesse caso, haveria um acréscimo correspondente à incidência da CPSS sobre o valor da despesa estimada.
Ainda assim, a solução aventada – cujo custo fiscal, a depender da data da implementação, supera o limite para aumento da despesa com pessoal autorizado pelo Anexo V da LOA 2024 – exigirá a definição de um valor a ser pago, e a alteração da Lei Orçamentária Anual, e, eventualmente, a suplementação orçamentária para fazer frente a seus impactos no exercício.
Embora, como já visto, não se trate de solução “inédita”, ela repete um equívoco já cometido em 2003, e cujo objetivo foi o de “contornar” a norma constitucional, concedendo um reajuste geral, para todos os servidores, mas sem a aplicação de um índice uniforme a incidir sobre as parcelas remuneratórias dos servidores.
Apesar desse viés, a proposta tem apelo perante os servidores de menor renda, o que pode incentivar o Executivo a adotar a medida, explorando, ainda, o “conflito de interesses” subjacente às disparidades remuneratórias entre carreiras e cargos no serviço público federal. Sob esse prisma, os servidores de melhor remuneração são vistos como “privilegiados” e a concessão de um reajuste linear é considerada uma forma de “aumentar o fosso” entre as carreiras, em termos salariais.
Contudo, o caráter “geral” desse tipo de reajuste não pode ser ignorado, caso venha a ser concedido, ou seja, não pode ser concedido de forma seletiva, ou excluindo-se aposentados e pensionistas, como ocorre com a implementação de medidas como o aumento de parcelas indenizatórias, como o auxílio-alimentação.
Mas o obstáculo constitucional, relativo aos agentes públicos remunerados sob a forma de subsídio, parece incontornável, visto que, desde 2003, esse regime remuneratório passou a ser implementado largamente no âmbito do Poder Executivo, além de haver sido regulamentado nos termos das leis de regência para as carreiras que estão a ele submetidas por determinação constitucional.
Em qualquer cenário, os riscos de judicialização são elevados. Em 2015, o Tribunal de Justiça do DF e Territórios determinou o pagamento a todos os servidores do Tribunal do valor correspondente ao reajuste geral de 13,23%, denominado de VPI. De acordo com o TJDFT, a VPI promoveu um ganho real diferenciado entre os servidores públicos federais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e das autarquias e fundações públicas federais, à medida que instituiu uma recomposição maior para os servidores que percebiam menor remuneração, sendo a revisão anual geral “um direito subjetivo de todos os servidores públicos”. Em 2017, o Conselho da Justiça Federal, na Reclamação nº 24.270, concedeu o direito à incorporação de 13,23% a todos os servidores da Justiça Federal.
Embora o Poder Judiciário adote posição de deferência em relação ao Executivo, evitando adotar decisões com elevado impacto fiscal, notadamente no que se refere a concessão ou extensão de reajustes, como ocorreu quando, apreciando essa questão, o STF, no ARE 1.208.032, em 2019, entendeu que “a concessão, por decisão judicial, de diferenças salariais relativas a 13,23% a servidores públicos federais, sem o devido amparo legal, viola o teor da Súmula Vinculante 37”, segundo a qual “não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”, a insegurança jurídica, o aumento da litigiosidade e os riscos inerentes a essa solução, que escancara o desrespeito à Constituição, não podem ser desconsiderados.
Assim, não é recomendável que a União adote a concessão de “abono” ou “reajuste nominal” como medida para recuperar, ainda, que parcialmente, e de forma diferenciada, as perdas salariais dos servidores públicos federais, tornando ainda mais caótico o seu sistema remuneratório.
*Luiz Alberto dos Santos é advogado, Consultor, Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
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