Joelson Dias*
Em sã consciência, ninguém jamais disse ser fácil a consolidação de um regime democrático ou a convivência entre os que pensam diferente.
Conceitualmente e na prática, a democracia sempre foi permeada de desafios em sua implementação e, pelo menos desde Winston Churchill, longe de um modelo ideal, convencionou-se aceitá-la como “a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”
Da mesma forma, não obstante o conselho de Karl Popper, nem sempre encontramos a necessária paciência ou sensatez para não censurar ou contradizer as “filosofias intolerantes” apenas mediante o discurso racional ou combatê-las somente na opinião pública. Enfim, que pistas teremos de quando chegar o momento exato de “suprimi-las, mesmo através de força” ou, em outras palavras, de “não tolerar os intolerantes” quando se recusarem “a ter uma discussão racional, ou pior, renunciarem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são traiçoeiros, e responder a argumentos com punhos e pistolas.”
Afinal, também em sã consciência, ninguém jamais teve dúvida de que a consolidação de um regime de liberdade e garantias, ou seja, democrático e de direito, portanto, é, na verdade, o que define a diferença entre a civilização e a barbárie.
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Com efeito, após as atrocidades da segunda guerra mundial, consolidou-se o constitucionalismo e, além da organização do Estado, também a garantia de direitos e garantias fundamentais como necessária limitação do poder, na acepção, como nos ensina Canotilho, de que o princípio do governo limitado é “indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade.”
Mas, mesmo muito antes, há cerca de 800 anos, mais precisamente, é sabido, desde a Magna Carta, de novo quem nos lembra é Churchill, “existe uma lei à qual a própria Coroa está sujeita”. Afinal, ao longo da história, todas as vezes que tais garantias de direitos, liberdades fundamentais e necessária limitação do poder foram menosprezadas, a intolerância ao diferente sempre serviu de pretexto, além de conversões forçadas, livros queimados e inquisições, também para o uso da violência, repressão, tortura, ódio, a perseguição e, muitas das vezes, inclusive a eliminação física de quem fosse considerado inimigo político, herege ou apóstata.
E perseguição ou mesmo eliminação física especialmente dos apoiadores de primeira hora de alguns regimes arbitrários, autoritários ou de exceção: Thomas Cromwell no período das reformas religiosas de Henrique VIII, os “inimigos” da Revolução como Danton, Robespierre e Saint-Just durante o Reinado do Terror na Revolução Francesa, quadros do Partido Comunista da antiga URSS como Zinoviev, Kamenev, Rykov e Bukharin no Grande Expurgo de Stalin e, mesmo no Brasil, Carlos Lacerda, um dos principais articuladores civis do golpe militar de 1964, cassado e preso em dezembro de 1968.
De tais fatos históricos, testemunhados pela humanidade, em épocas diversas e distintos países, uma minoria barulhenta de assim denominados “patriotas” lamentavelmente não tem se dado conta. Ou, como em tantas outras narrativas políticas, na bolha digital em que se encontra isolada, deixando-se levar pela desinformação e o negacionismo. Afinal, como imaginar que alguém possa defender o endurecimento do regime, o autoritarismo e o arbítrio, em detrimento de sua própria liberdade, quando, pela história, sabe-se ou deveria saber pode ser dele a próxima vítima?
Por outro lado, violência, ódio, regimes de terror, repressão, tortura e perseguição, por mais brutos e cruéis, sempre tiveram os seus dias contados. Mais cedo ou mais tarde, tais regimes caem pelas suas próprias divergências ou rupturas internas ou pela resistência e resiliência das suas próprias vítimas. Serviram só, sempre, ao caos, censura, medo, falsas acusações, muitas mortes, dor e sofrimento, ao esgarçamento do convívio social, a ressentimentos e desperdício de enorme capital humano e financeiro tanto para a sua manutenção como para a posterior restauração da ordem democrática.
É por tudo isso, que as manifestações deste 7 de setembro, em relação àqueles e naquilo em que se propõem como verdadeira ruptura democrática, de deslegitimação de nossas instituições republicanas, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, além até mesmo da ameaça à vida dos seus ministros e familiares, mais que uma questão política, mais que o reflexo dessa agenda antiliberal, constituem-se, de fato, em outro passo acelerado rumo a essa verdadeira encruzilhada entre a civilização e a barbárie.
Muitos seguirão acreditando e apostando cada vez mais radicalmente nessa pauta antiliberal, de ódio, ressentimento e, sem oferecer absolutamente nada em troca, de destruição de tudo o que conseguimos construir nos últimos 30 (trinta) anos de consolidação democrática, ainda que com severos deficits e com muito ainda por aperfeiçoar. Outros, porém, como eu, apesar dos prognósticos em sentido contrário dessa minoria barulhenta de detratores do regime democrático, certos de que a esperança sempre vencerá o medo, de que tamanha distopia autoritária não prevalecerá sobre nossos sonhos de maior liberdade, enfim, de que não terão sido em vão todos os nossos esforços ao longo das últimas décadas de construção de um verdadeiro estado social democrático de direito.
No final do romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, Macabéa, personagem principal, é atropelada.
Para muitos, é verdade, nossa democracia também será atropelada neste 7 de setembro, pelos atos antidemocráticos, a violência, o ódio e o ressentimento daqueles que, não se sabe a troco de que mais especificamente, como nos alerta Benjamin Teitelbaum, já não acreditam mais no sistema, em suas instituições e na convivência social democrática.
Mas, exatamente como no romance, não se iludam: como Macabéa, é nesse momento a “Hora da Estrela” também de nossa democracia, que, em estado de emergência e calamidade pública tal como a protagonista, desencantará de súbito, permitindo às pessoas perceberem sua existência, quando eventualmente já não existir mais.
*Joelson Dias é advogado, sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, Brasília-DF. Ex-Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Representante adjunto do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) no Distrito Federal. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
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