Valério Luiz de Oliveira Filho *
14h11. Meu pai está atrasado. Esses são os números que, enquanto eu olhava o relógio do celular, de repente desapareceram com a luz azul da ligação: “Valerinho, pelo amor de Deus, vem aqui pra rádio que seu pai tomou um tiro!”. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, desligaram. Tento retornar, e nada. Imediatamente contato Pedro Gomes, administrador da rádio. “Pedro, que história é essa que meu pai tomou um tiro?”. “Você está em casa? Espera aí que vou mandar um carro da rádio te buscar. Seu pai tomou uns tiros aqui”. O plural me saltou aos ouvidos. Fui para a calçada esperar. Logo apareceu o apertado Uno de duas portas, mas com motorista, alguém no banco traseiro e o do passageiro providencialmente vazio. Assim que me sento, sinto uma mão vir de trás e tocar meu ombro, como numa condolência. Ali me acometeu uma certeza terrível, embora ainda difusa, e o Uninho partiu, como a me levar para um sonho ruim.
O carro logo chegou à rua Teixeira de Freitas, mas precisou parar na esquina, dada a quantidade de curiosos. Abri a porta e saí andando. A seguir já apareciam aos meus olhos os fotógrafos, as câmeras. Com mais alguns passos avistei, tremulando, as faixas amarelas, aquelas que usam para isolar cenas de crime. Continuei caminhando e passo a passo descobrindo, atrás da esquina, o fim da vida do meu pai e o começo de outra minha. O Ford Ka preto que todo dia apontava na garagem da nossa casa agora estava parado no meio da rua, com as duas portas abertas e os vidros crivados de balas. Era como se aquele carro não pertencesse àquela cena. Ainda assim, lá estava o carro. E eu não sabia por quê.
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O sol forte nos olhos, o calor e o ar seco davam a tudo um aspecto de miragem esfumaçada. Eu ainda esperava que a cena desaparecesse no poente, escorresse tais quais gotas de suor no banho após um dia infernal. Mas uma imagem em particular se impregnou instantaneamente, uma mancha que se faria presente não importa quantas vezes o Sol se pusesse e levantasse: o pé do meu pai pendurado para fora do carro, com o tênis de corrida que usava para andar de bicicleta. Próximo dali, Mané de Oliveira terminava sua programação do dia na tevê, mas, desta vez, era ele quem recebia a notícia. Correu do estúdio na esperança de ainda prestar socorro. E foi o que tentou fazer quando chegou: investia em direção ao carro, gritando para que chamassem uma ambulância, enquanto era contido por outros jornalistas, seus amigos. Um deles por fim lhe informou que não havia nada a fazer. Valério já estava morto. “Já?!”, ouvi meu avô replicar. Rasgou na carne, então, a voz potente de velho radialista: “Mataram meu filho! Mataram!”.
Meu pai, Valério Luiz de Oliveira, foi brutalmente assassinado, na porta da rádio em que trabalhava, às duas da tarde, neste 5 de julho de 2012 narrado. Era radialista, jornalista e cronista esportivo. Morto por represália às críticas que fazia ao comando do então vice-presidente, e posteriormente presidente, do Atlético Clube Goianiense: um intocável cartorário chamado Maurício Sampaio. Meu avô, Manoel de Oliveira, que vi desabar no asfalto quente perante o corpo baleado do filho, tivera, até ali, uma trajetória altiva e alegre: saíra da roça, com apenas o 4º ano primário, para se tornar o maior radialista e jornalista esportivo da história de Goiás.
Alguns dias depois do crime, informações vazadas dos próprios quartéis da capital davam conta de que uma verdadeira operação militar, com o uso de esquadrão da “inteligência” da PM e de viatura descaracterizada, havia sido mobilizada para crivar meu pai com seis balas no meio da rua. No fim de 2012, Sampaio comprou a maior rádio esportiva do estado de Goiás, então chamada “Rádio 730”. Durante o ano de 2013, quando já estava formalmente denunciado como mandante do assassinato, utilizou a emissora como veículo oficial de suas teses de defesa. Cansei de perder dias de trabalho respondendo aos editoriais da rádio e aos artigos que plantavam nos jornais de Goiânia. No ano de 2014, veio a pronúncia, decisão que entende pela presença, nos autos, de suficientes provas para submeter os acusados a um júri popular. Em abril de 2015, a pronúncia foi mantida pelo TJ. Restava preparar o Júri. Mas não seria simples assim.
PublicidadeNo fim de 2017, estava eu trabalhando, quando sou surpreendido pela mensagem de um jornalista: “Gostaria que você comentasse a decisão que anulou o processo do assassinato do seu pai”. “Que decisão?”, pensei. Depois de uma varredura pelos portais dos Tribunais Superiores, a resposta: o então Ministro Lewandowski, monocraticamente, em sede de habeas corpus no STF, anulara a pronúncia. Foi como se o chão tivesse sido retirado debaixo dos meus pés. Felizmente, três meses depois, após recurso da PGR, o Ministro, com grande sensibilidade, se retratou da anulação, entendendo ao fim que a pronúncia continha, sim, provas suficientes da autoria intelectual de Sampaio. “Agora faremos o Júri”, pensei. Mas em casos como este, repito, nunca é simples assim.
Um dos corréus, sargento Da Silva, imediatamente ingressou com incidente de insanidade, alegando possuir “esgotamento psicológico”, “amnésia”, “TOC”, “stress” e “pressão alta”. Na petição, foi alegado ainda que o PM se encontrava “completamente incapaz de entender a persecução penal que o rodeava”, e que perdera “a noção do tempo e do espaço”. O processo foi então suspenso até exames da Junta Médica oficial. Em razão do acúmulo de trabalho da Junta Médica e da consequente demora para ultimação do exame, a suspensão durou até o fim de 2019. Tanto tempo para, ao cabo, o laudo dos peritos concluir que se tratava de uma grosseira simulação por parte do sargento.
Depois de tudo isso, não havia mais desculpa possível. Pedi a realização do Júri. Havia, porém, a desculpa do impossível: outro juiz, que também presidia o caso, suspendeu novamente o processo, desta vez alegando que a Comarca de Goiânia não detinha estrutura física suficiente para receber um julgamento com tantos réus, com tantas testemunhas, e de tamanha repercussão. O MP goiano e até a Sociedade Interamericana de Imprensa questionaram o então Presidente do TJGO, que, por sua vez, contrariava as alegações do juiz e garantia que o Tribunal tinha, sim, condições estruturais e administrativas para proceder à Sessão Plenária. Fiquei entre um e outro, sem saber o que fazer. Por fim, o juiz se deu por suspeito e o caso foi para o substituto.
Como que por um parto, a data do tão aguardado Júri Popular foi concebida: 23 de junho de 2020. Mas em março, três meses antes, o aborto: estoura a pandemia da covid-19, e todas as atividades presenciais da Justiça goiana são suspensas, sem previsão de retorno. Retornariam um ano e meio depois, no segundo semestre de 2021. Reforcei o pedido, e nova data foi marcada para 14 de março de 2022. Chegando à porta do Tribunal, um clima de grande expectativa. Frustrada, mais uma vez. Sampaio compareceu à Sessão sem seu advogado, dispensado um dia antes. O juiz, então, o intimou a constituir novo defensor em dez dias, e remarcou o julgamento para dois de maio. A partir daí, o show de horrores foi redobrado. O defensor recém-constituído optou por investir não contra as provas que incriminam seu cliente, mas contra os sujeitos do processo. Moveu Exceção de Suspeição e Reclamações Disciplinares em face do juiz e dos promotores de justiça do caso, com alegações surpreendentes pelo nível de má-fé.
Mentiu que os promotores de justiça pediram a prisão preventiva de Sampaio em 14 de março, depois do réu ter se apresentado sem advogado. Mentiu que o juiz era sócio de escritório de advocacia que processara o réu, anos antes, em uma ação cível. A Exceção e as Reclamações foram, naturalmente, arquivadas por absoluta falta de fundamento, mas o objetivo delas nunca foi propriamente jurídico, e sim propagandístico. Sampaio e o defensor convocaram uma coletiva de imprensa para alardear as mentiras e avisar que, em razão da “parcialidade” do juiz e dos promotores, não participariam da Sessão agendada para dois de maio. E fizeram conforme o prometido. No dia do julgamento, os advogados Silva Neto e Bruno Martins abandonaram o Plenário do Júri, pelo que foram multados. Cogitei acionar o Tribunal de Ética da OAB, pois aquilo não era defesa.
Qual não foi minha surpresa quando recebo um release, destinado à imprensa, informando que a OAB-Seção Goiás impetrara mandado de segurança Criminal para anular a multa imposta. E não só isso: analisando a peça, percebi que a Procuradoria de Prerrogativas copiara passagens inteiras da Exceção de Suspeição e das Reclamações Disciplinares temerariamente movidas por Sampaio. Senti-me ingênuo, traído, e feito de idiota. Afinal, o vice-presidente da OAB-Seção Goiás agora constava, também, entre os advogados do mandante do crime. Nova Sessão foi marcada para o dia 13 de junho. Nesse interregno, persistiram as coletivas de imprensa concedidas, em salas de hotel, pelo cartola e sua defesa técnica. A Sessão de junho se iniciou com os ânimos já bastante acirrados. Com o encerramento do primeiro dia, me acalmei. O Júri efetivamente se instalara. Agora era se concentrar para fazer um bom trabalho jurídico.
No dia seguinte, cheguei ao Tribunal com meus papeizinhos debaixo do braço, e doutora Renata, promotora de Justiça, dispôs as mãos no meu ombro, como quem precisa informar alguma coisa, mas está sem jeito de dizer. E era isso mesmo. “Olha, eu acho que vai anular”, finalmente disse. “Como assim?”, repliquei. Entre maio e junho, após abandonar o júri, Silva Neto tentara tirar o julgamento da capital e levá-lo para uma comarca do interior, mas o desaforamento, ali, em 13 de junho, já estava negado. O mesmo advogado, no mesmo período, providencialmente substabelecera-se em um processo do Rio de Janeiro, com audiência marcada também para 13 de junho, e, com base nesta manjada artimanha, pedira o adiamento da Sessão do Júri. Sem sucesso, no entanto. O problema não podia ser nada relacionado a essas chicanas. “É que um jurado sumiu”, revelou, então, a promotora. Na contagem dos sete juízes leigos naquela manhã, viu-se que um deles desaparecera durante a noite.
Uma vez localizado pela polícia do Tribunal, o jurado alegou que evadira do hotel na noite anterior por problemas de saúde. Teria comido lasanha em um dos intervalos do julgamento, mesmo sendo intolerante à lactose. O evadido foi multado, mas esse inusitado episódio jamais foi completamente esclarecido. Apesar das dúvidas que pairavam e ainda pairam, uma certeza havia: o jurado quebrara sua incomunicabilidade, em violação ao artigo 466, §1º, do Código de Processo Penal (CPP). A partir dali, se o julgamento continuasse, estaria fadado à anulação. Como era inevitável, o Conselho de Sentença foi dissolvido e o Júri remarcado para novembro. Em entrevista naquele dia, ainda na porta do Tribunal, não consegui segurar e chorei de frustração.
Os meses de espera foram longos, mas novembro chegou. Ciente do desgaste provocado por Silva Neto, o réu Sampaio o deixou restrito aos Habeas Corpus em Brasília e designou outros dois de seus advogados para a atuação em Plenário. Entre eles, o Vice-Presidente da OAB-Seção Goiás. Senti-me sozinho, pois, absorvido no estudo dos autos, não tive tempo de mobilizar ninguém. Meu companheiro nessa tarefa, avô Manoel, falecera em 2021, vítima de câncer, sem ver justiça. Resultado: as centenas de cadeiras dos Órgão Especial do Tribunal, onde o julgamento se realizaria, estavam tomadas por parentes e amigos dos cinco acusados. Amarga foi a surpresa que me invadiu quando, após ouvir um dos advogados de defesa tripudiar nossa família por duas e horas e meia em sua sustentação oral, veio uma fragorosa salva de palmas do público.
O julgamento durou três dias inteiros: de sete a nove de novembro de 2022, culminando com a condenação de quatro dos cinco réus, incluindo o mandante do crime, Maurício Sampaio. Os condenados apelaram no ato, em ata. As razões de apelação, no entanto, foram apresentadas meses depois, em abril de 2023. E apesar do excelente trabalho do MPGO, fiz questão de apresentar consistentes contrarrazões complementares, as melhores em meu poder. Após outros tantos meses de estudo no gabinete do Desembargador Relator, o processo foi pautado para a apreciação dos recursos: 27 de fevereiro de 2024, esse seria o dia. Fiz sustentação oral, tentando cobrir todas as supostas nulidades alegadas pelas defesas. Um desembargador pediu vista, e eu estava confiante para a semana seguinte, quando o julgamento seguiria.
Dois dias depois, porém, no dia 1º de março, chega em meu celular, mais uma vez, como se fosse déjà vu, a mensagem de um jornalista: “Maurício foi inocentado?”. Agora, pelo menos, eu não precisaria procurar a decisão. Viera anexada na pergunta. Com um frio na barriga, abri, e fui direto até o dispositivo. Só li a frase “bem como anulo todos os atos processuais posteriores”. Tratava-se de uma decisão monocrática da ministra Daniela Teixeira, do STJ, reconhecendo a nulidade de uma audiência ocorrida nos idos de 2015, e consequentemente invalidando tudo o que ocorrera desde então, inclusive o Júri Popular, com suas condenações. De repente me invadiu o medo de que aquele déjà vu de 2017 não se estendesse à reversão conseguida em 2018. Mas algo dentro de mim dizia que esta história não poderia terminar assim.
A Procuradoria de Recursos Constitucionais, naturalmente, recorreu. Mas eu também queria falar. Ocorre que, em HC, a voz dos assistentes de acusação, das vítimas, costuma ser silenciada. Dificilmente magistrados admitem nossa “intervenção” em procedimentos desse tipo, teoricamente porque são ferramentas excepcionais, cirúrgicas, restritas a flagrantes ilegalidades impingidas à liberdade de locomoção dos réus, e, portanto, somente a estes atinentes. É possível que essa tenha sido a origem do HC, mas, hoje em dia, é manejado, abusivamente, como um verdadeiro processo penal paralelo, onde praticamente não há regras. No caso do meu pai, foram mais de vinte impetrações da defesa às vésperas do Júri, rediscutindo cada ponto que perderam, nas instâncias ordinárias, em dez anos de processo. Qual é o sentido de permitir às vítimas atuar nessas instâncias ordinárias, e, dada a atual extensão do HC, negar-lhes palavra justamente aí, onde toda essa atuação pode ser questionada, rediscutida e, eventualmente, anulada?
Interpus meu Agravo mesmo assim. Tecnicamente, nada que já não estivesse nos Agravos do MPGO e da PGR. Mas queria dizer que eu, o “representante da vingança privada”, como fui tantas vezes jocosamente chamado, não carrego uma demanda “punitivista”, mas de justiça. E sim, de direitos humanos. Todas as pautas progressistas, como as do combate ao racismo, à homofobia, à violência contra a mulher e à violência contra as crianças, são, de certa forma, “punitivistas”. Passam, necessariamente, pela punição dos agressores. Isso porque reconhecem um dado fundamental: que a assimetria de forças existe não apenas entre Estado e indivíduo, mas também entre indivíduos dentro da sociedade, na qual há poderosos e vulneráveis. A Criminologia Crítica toma o poder punitivo do Estado como expressão do interesse desses poderosos, e por isso a “forma” seria garantia tão importante, para citar Aury Lopes. Garantia do vulnerável contra o arbítrio dos que podem usar o Estado segundo interesses próprios.
Acontece que, pelo andar da carruagem, ou da carroça, aqui em Goiás, os poderosos resolvem seus problemas pela força bruta mesmo, geralmente da polícia, e depois instrumentalizam as garantias, tais quais vulneráveis fossem, para contar com a proteção do Estado para a brutalidade. Numa situação dessa natureza, que socorro os fracos têm senão a força pública? O Estado não é um conceito criminológico fixo, pois está sempre em disputa: pode tanto proteger quanto oprimir. Oprimiu-me quando disponibilizou viatura e homens para matar meu pai, e agora clamo pela proteção das suas togas. Felizmente, a Ministra Daniela, em uma demonstração de grandeza e, principalmente, sensibilidade jurídica, visualizou, após as informações trazidas pelos recursos do Ministério Público, a profundidade do que o HC tentara simplificar.
Explico: um dos réus, Marcus, estava preso porque fugira pra Portugal, e, após extraditado, requereu uma audiência com o juiz para explicar as razões da fuga. Segundo o relato, fora ameaçado por outro corréu, aquele Da Silva. A defesa de Da Silva e as dos outros corréus alegaram que, como os comparsas do fugitivo foram citados na audiência, os respectivos advogados deveriam ter acompanhado tal ato, que deliberara sobre o pedido de soltura de Marcus. Alegaram isso, porém, meio década depois, apesar de cientificados à época. E no Júri, utilizaram essa audiência, por toda a extensão de suas sustentações orais, para tentar convencer os jurados de que as declarações de Marcus no processo, desde a delegacia, se deram por pressão da Polícia Civil e do Ministério Público. Depois de condenados, mentiram em HC que nosso pedido de condenação se baseou no teor da audiência por eles questionada. Juntamos, então, a ata de julgamento, onde inexiste qualquer menção da defesa a respeito, bem como os vídeos da integralidade dos debates em Plenário, restabelecendo a verdade a olhos vistos.
Seja pela “nulidade de algibeira”, pela ausência de consignação em ata ou pelo artigo 365 do CPP, jurisprudência pacífica do STJ entende pela ausência de irregularidade formal a ser judicialmente reconhecida. Foi isso que, sabiamente, uma vez a par de todas as informações, decidiu a Ministra Daniela. A ideologia da “forma” como garantia, embora acertada sob perspectiva puramente teórica, deu azo ao surgimento de escolas de advocacia inteiramente dedicadas a varrer provas materiais para debaixo do tapete de “nulidades” fabricadas, como quando os réus mandaram representantes da OAB- Seção Goiás “fiscalizar” sessão de sorteio de jurados para a temporada em que se realizaria o Júri: embora a sessão fosse pública, inclusive com link para acompanhamento remoto, filmaram escondido, com o celular, para passar a impressão de que se realizara a portas fechadas. Sabiam que o juiz olharia as fichas para checar se o sorteado servira nos últimos doze meses (CPP, art. 426, §4º), e se aproveitaram disso para mentir, em recurso, que o magistrado estava escolhendo jurados.
Isso não é defesa criminal. No meu dicionário, tem outro nome. Devidamente alertados por contrarrazões, os desembargadores do TJGO rechaçaram “nulidades” dessa estirpe e negaram, no último dia 23 de abril, as apelações dos condenados, mantendo a soberana decisão do Conselho de Sentença de Goiânia. Mas a retratação da ministra Daniela vai a julgamento pela Quinta Turma do STJ amanhã, dia 21 de maio. Agora, na iminência dessa importante decisão, Sampaio habilita, em Brasília, ninguém menos que Délio Lins e Silva, presidente da OAB-DF. Não tenho a menor ideia em que isso pode, objetivamente, ajudar o assassino de jornalista. Mas me parece, indubitavelmente, uma tentativa de demonstrar algum poder. Sei, por outro lado, que as estruturas da OAB jamais foram justas, ou sequer imparciais, neste caso. Como se eu também não fosse advogado, e não passasse de empecilho a interesses comerciais.
Com Hanna Arendt, aprendemos que o mal, para prosperar, deve, antes, ser reduzido à banalidade: corpos baleados se transformam em pendências na caixa de entrada de algum computador por aí. Meu trabalho é devolver aos fatos o peso que lhes é próprio. É resistir à sua banalização, e mostrar que, enquanto a justiça não for feita, o corpo do meu pai ainda estará lá, sob o Sol forte das duas da tarde, com o pé pendurado para fora do carro. Quem precisa dos direitos humanos? Quantos são os pobres, violentados, pedindo a responsabilização penal de agentes de Estado? Se o caso Valério, no qual sobejam provas materiais e brutalidade gratuita, passou por todos os percalços narrados, significa que alguns privilegiados em nosso país estão tacitamente autorizados a matar. Para mim, no entanto, esse mal jamais será banal. Meu trabalho é presentificar, à consciência dos julgadores, os espíritos do meu pai e do meu avô. Eles são os meus clientes. Visitam-nos à noite e apresentam seus pleitos. Pedem que os deixemos, finalmente, descansar em paz.
* Valério Luiz de Oliveira Filho é advogado, especialista em Criminologia e Segurança Pública, mestre em Filosofia e membro do Observatório Nacional de Violência contra Jornalistas e Comunicadores, do Ministério da Justiça.
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