Mauro Menezes* e Carol Proner**
A crise político-institucional brasileira assumiu contornos dramáticos a partir da assunção de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2019. Desde então, o país – que já experimentava os efeitos nefastos da deposição farsesca da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ao cabo de um processo de impeachment juridicamente forjado – afundou numa espiral interminável de atos insensatos e grotescos protagonizados pelo próprio chefe de governo.
Bolsonaro foi guindado ao poder em 2018, numa eleição afetada pela manipulação judicial que excluiu da disputa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vítima no mesmo ano de uma prisão abusiva que perdurou 580 dias, após a qual a Suprema Corte do país admitiu o comportamento suspeito e parcial do juiz Sérgio Moro, que proferiu uma condenação sem provas, finalmente anulada em 2021.
O panorama resultante da administração Bolsonaro tem sido catastrófico. De um lado, a integridade das instituições do Estado brasileiro e as liberdades democráticas vêm sendo objeto de constantes ameaças e ataques. O presidente da República atua em permanente desafio ao equilíbrio dos Poderes, acenando com a evocação de símbolos e instrumentos da ditadura militar instaurada em 1964 e encerrada em 1985. Na condição de capitão reformado, Bolsonaro flerta com a intervenção militar para fazer valer os seus propósitos políticos, numa postura ofensiva à Constituição Federal de 1988.
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Seu método de exercício do poder gravita entre a manipulação do fanatismo irracional e agressivo de seus apoiadores e a aniquilação progressiva das políticas públicas e da integridade institucional de diversos segmentos da administração pública. Não se trata propriamente de um governo, senão de um desgoverno de inspiração fascista, cuja matriz ideológica associa pautas de extrema-direita no campo dos costumes, da liberação de armas e do esvaziamento do Estado laico, de um lado, a diretrizes ultraliberais em termos econômicos, voltadas a promover uma perigosa e profunda desregulação, que afeta gravemente paradigmas de proteção aos direitos humanos, sociais, trabalhistas e ambientais, de outro lado.
O comportamento negacionista e ineficaz de Jair Bolsonaro e de seu governo, no contexto do combate à pandemia da Covid-19, multiplicou os danos sofridos pela população brasileira. Após um ano e meio do início da crise sanitária global provocada pela disseminação do novo coronavírus, o Brasil ocupa o posto de segundo país mais afetado por mortes (cerca de 570 mil falecidos) e com o terceiro contingente de casos, em termos comparativos internacionais (cerca de 20,4 milhões de infectados). Tais números superam largamente a fração proporcional entre a população brasileira e a população mundial. Sem dúvida, a má condução governamental foi decisiva para esse quadro aterrador. Inacreditavelmente, esses gigantescos prejuízos humanitários foram potencializados por uma deliberada e sistemática postura de boicote e sabotagem de medidas de prevenção, exercitada e estimulada pelo próprio presidente da República, que chegou ao ponto de retardar o processo de vacinação de modo intencional.
Além de produzir severos prejuízos à democracia e aos direitos sociais, Bolsonaro trabalha pela corrosão da noção republicana, segundo a qual os atos de governo devem observar a impessoalidade, o discernimento entre interesses públicos e privados, a transparência administrativa e a necessária prestação de contas à sociedade. Sua administração se caracteriza pela frequente apropriação de garantias do interesse público por interesses políticos, familiares ou pessoais do presidente da República. Sem a menor cerimônia, Bolsonaro subverteu os princípios da Lei de Acesso à Informação (lei 12.527/11), valendo-se de exceções à regra geral de transparência e publicidade dos documentos públicos, para impor sigilos documentais injustificáveis. Proibiu a divulgação por cem anos dos registros de acesso de seus filhos ao palácio governamental e do processo sofrido pelo general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde de desempenho calamitoso durante a pandemia, por comparecer a um rally político, em desacordo com os regulamentos militares.
Outro significativo atentado praticado por Bolsonaro aos freios e contrapesos constitucionais decorre do seu permanente esforço de cooptação do procurador-geral da República, Augusto Aras, que passou a exercitar suas funções com exótica tolerância diante dos desatinos jurídicos levados a efeito pelo presidente e por sua equipe, numa conduta a um só tempo desatenta ao texto constitucional, como também avessa à autonomia tradicionalmente observada pelos ocupantes do cargo. As omissões indesculpáveis de Aras já motivaram inúmeros questionamentos formais de seus próprios colegas do Ministério Público Federal, de parlamentares e de entidades da sociedade civil, haja vista o anômalo alinhamento que o procurador-geral da República demonstra em relação ao presidente da República, mediante uma condescendência frequente com suas vontades, caprichos e sobretudo diante de suas transgressões legais.
Seguindo um costumeiro e intencional desvio de finalidade no exercício do cargo e na interpretação da Constituição e das leis brasileiras, a provocativa escalada autoritária do atual presidente brasileiro atingiu sua culminância com o recente pedido de abertura de processo de impeachment contra um dos magistrados da Corte Suprema, apresentado por Jair Bolsonaro ao presidente do Senado Federal. Essa agressiva providência, inédita na história nacional, foi adotada justamente devido à insatisfação do presidente ante decisões tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes no regular e legítimo cumprimento de suas competências. A tensão institucional alcançou, assim, um estágio irreversível, elevando os receios de uma confrontação ainda mais perigosa, considerando que a investida presidencial constituiu uma reação a medidas judiciárias que determinaram a prisão de um dos seus apoiadores, além da expedição de mandados de busca e apreensão contra outros, com o objetivo de desbaratar redes extremistas dedicadas a atacar e planejar a destituição violenta da cúpula do Poder Judiciário. A partir de então, nos meios políticos, passou a prevalecer a crença de que Bolsonaro abdicou em definitivo de qualquer saída pacífica para a artificial crise que ele mesmo concebeu. Sua aposta se afigura nítida após esses acontecimentos: estimular o rompimento das bases essenciais do convívio democrático entre as autoridades do país, uma vez que o seu próximo passo pode vir a ser o puro e simples desrespeito à supremacia das decisões judiciais.
O presidente Bolsonaro dá claros sinais de esgotamento político e de credibilidade e respeitabilidade sociais. Em que pese enfrentar crescentes manifestações de protesto, ações judiciais que denunciam os seus crimes e uma comissão parlamentar de inquérito que expôs as vísceras da desastrosa e corrupta gestão da pandemia pelo governo central, além de denúncias junto ao Tribunal Penal Internacional, sua administração sobrevive à custa de negociações parlamentares obscuras com setores acostumados à troca de favores própria do mais baixo fisiologismo político. Eis a razão pela qual os cerca de 130 pedidos de impeachment contra o presidente da República, já apresentados ao Congresso Nacional, continuam obstaculizados pelo presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, fiador desses acordos espúrios entre um governo moralmente derruído e uma base de parlamentares ávida por verbas e cargos a qualquer custo.
Os brasileiros e brasileiras, a essa altura, contam os dias para as eleições presidenciais de 2022, única alternativa concreta e provável de encerramento do mandato nefasto de Bolsonaro, ao tempo em que se organizam e buscam reagir, na medida do possível, à mobilização fascista dos apoiadores de um governo que parece agora inclinar-se para um golpismo cada vez mais escancarado.
*Mauro Menezes é advogado, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República do Brasil e mestre em Direito Público.
**Carol Proner é advogada, doutora em Direito Internacional e pós-doutora em Ciências Sociais
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