Jorge Almeida*
A pandemia do coronavírus exacerbou as contradições das relações Brasil-China no governo Bolsonaro.
Em 17 de março, o deputado Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e filho do presidente da República, acusou a China de ser culpada pela pandemia do coronavírus e de ter escondido a sua existência, comparando com a censura da “ditadura soviética” no caso do acidente na usina nuclear de Chernobyl.
Em resposta, o embaixador da RPC (República Popular da China), Yang Wanming, tuitou que a parte chinesa “repudia veementemente as suas palavras e exige que as retire e peça uma desculpa ao povo chinês” e que Eduardo Bolsonaro imitava Donald Trump, tendo contraído um “vírus mental” em sua recente viagem a Miami.
Leia também
O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, se manifestou oficialmente em defesa do deputado exigindo uma retratação do embaixador chinês, agravando os atritos diplomáticos e provocando especulações sobre eventuais prejuízos à economia brasileira.
O presidente Bolsonaro tentou telefonar para o presidente Xi Jinping para atenuar os atritos mas, em nota, a Embaixada da China no Brasil informou que “a parte chinesa não aceitou a gestão feita pelo embaixador Ernesto Araújo”, acrescentando que “Eduardo Bolsonaro tem que pedir desculpa ao povo chinês por sua provocação flagrante”.
PublicidadeA conversa só veio ocorrer no dia 24 quando, enfim, de acordo com Bolsonaro, “foram reafirmados os laços de amizade” e ampliados os “laços comerciais”.
Assim, os embaixadores de ambos países exigiram retratação da outra parte, mas, no fim das contas, ninguém pediu desculpas a ninguém e as relações continuaram sem retaliações econômicas.
Em 1º de abril, Eduardo Bolsonaro voltou à carga contra o “vírus chinês” e o Cônsul da China no Rio de Janeiro, Li Yang, respondeu com um artigo no jornal O Globo perguntando se o filho “03” do presidente é “tão ingênuo e ignorante quanto parece” e afirmando que “se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos seu inimigo mais qualificado”. Mas disse que o deputado não conseguiria tornar a China inimiga do Brasil, por que “não pode representar o grande país que é o Brasil”.
Mantendo o discurso anti-China, no mesmo dia, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, postou um tuíte de cunho xenófobo. Em resposta, a embaixada chinesa repudiou com “forte indignação” a declaração “absurda e desprezível”, “fortemente racista” e de “objetivos indizíveis”.
Em 22 de maio foi divulgado o vídeo de uma reunião ministerial de 22 de abril, quando Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes voltaram a atacar os chineses, mas afirmando não querer briga, pois “precisamos deles para vender” e “eles precisam de nós também”. Logo após, o embaixador chinês soltou mais uma nota, mas com conteúdo moderado, minimizando o fato.
Porém, dias depois, o filho “03” voltou a provocar fazendo um vídeo tendo ao fundo uma bandeira de Taiwan, como a inscrição “Viva Taiwan”.
Como vemos, as respostas dos chineses seguem a linha principal de suas relações exteriores que, de modo geral, têm sido marcadas pelo pragmatismo. Para eles, uma única condição sine qua non para a manutenção de relações diplomáticas e boas transações econômicas com outros países é o reconhecimento da RPC como única China e não o governo da Ilha de Taiwan.
A campanha de Bolsonaro teve forte tom “antichinês”, chegando ao máximo de ofensa política e simbólica àquele país quando visitou Taiwan em 2018. Os chineses acompanharam tudo com frieza, protestos moderados e articulações. E, no dia da posse, aqui estavam.
Depois da posse, seguindo pressões do grande capital brasileiro vinculado ao primário-exportador, especialmente do agronegócio e da mineração, o novo presidente alterou a sua política em relação à China passando a ser tutelado pelos setores que são um dos principais sustentáculos do seu governo, além dos militares, que também foram afirmativos na defesa de boas relações econômicas com a RPC.
Este interesse está tanto nas trocas comerciais, como na atração de mais investimentos diretos no Brasil, especialmente em infraestrutura.
Por isso, apesar de todos os conflitos existentes, Bolsonaro foi o presidente do Brasil que, no primeiro ano de mandato, se encontrou mais vezes com o presidente chinês. Foram três ocasiões, quando ocorreram diversos acordos bilaterais, principalmente econômicos.
Em um dos encontros, Bolsonaro chegou a pedir o favor de investir no leilão das bacias de petróleo que estava em curso, pois nenhuma empresa estrangeira tinha se interessado e o governo brasileiro precisava mostrar ao público resultados positivos em investimentos estrangeiros. De fato, além da Petrobras, só a estatal chinesa CNODC investiu no leilão.
Além disso, o Brasil sediou uma reunião dos países dos BRICS e indicou para presidência do novo banco da instituição um membro do Ministério da Economia e o general Mourão também esteve na China.
As contradições estão presentes entre os próprios filhos parlamentares do presidente. Enquanto o deputado Eduardo ataca sistematicamente os chineses, seu irmão, senador Flávio, participou de uma delegação à China, tendo elogiado os anfitriões antes, durante e depois da viagem, quando visitou a sede da Huawei e dirigentes do PCCh.
Como vemos, o grande capital brasileiro, na sua histórica subordinação ao capital internacional, está pouco interessado em discursos ideológicos estratosféricos, preferindo fazer negócios e obter lucros particulares, mesmo que prejudiciais a um projeto nacional que possa romper com a dependência estrutural do país.
As relações econômicas Brasil-China começaram a evoluir nos dois últimos anos do governo FHC e cresceram bastante durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, tanto em termos de trocas comerciais como na importação de capitais chineses pelo Brasil.
Ao contrário de especulações durante o impeachment de Dilma Rousseff, no governo Temer as relações econômicas bilaterais aumentaram significativamente.
Durante a campanha de 2018 e logo após a vitória de Bolsonaro, mais uma vez especulou-se que haveria redução nas relações econômicas Brasil-China. E, com a pandemia da covid-19, novos atritos e muitas notícias desencontradas sobre aquisição de equipamentos médicos chineses têm gerado confusões tanto à direita quanto à esquerda do espectro político.
Mas o comércio Brasil-China continua forte, mesmo em plena pandemia e troca de acusações e respostas. No primeiro quadrimestre de 2020 as exportações brasileiras para a China aumentaram 11,3%.
A xenofobia e o anticomunismo também têm sido embrulhados no mesmo pacote para reforçar os discursos mais reacionários da parte dos governantes e seus apoiadores. Isso, apesar do próprio Bolsonaro ter dito, quando estava chegando para sua visita oficial à China, até mesmo para se justificar perante sua base mais anticomunista e com tendências neofascistas, que estava “num país capitalista”.
Aliás, esta foi uma das poucas falas de Bolsonaro sobre a China que guarda relação com a realidade. De fato, desde as reformas pró mercado iniciadas pelo PCCh e o estado chinês no final dos anos 70, a RPC vem consolidando as relações capitalistas, tanto em seu interior como internacionalmente, sendo hoje grande defensora da chamada globalização e da quebra de barreiras econômicas protecionistas.
Neste sentido, tem avançado numa perspectiva de expansionismo econômico e de influência política que não tem a marca das pressões e agressões que os EUA mantém com seus parceiros voluntários ou forçados. Mas não deixa de exercer uma reprodução da dependência nos países subdesenvolvidos ou chamados de “em desenvolvimento” como o Brasil.
* Jorge Almeida é professor Associado IV do Departamento de Ciência Política e do PPG de Ciências Sociais da UFBA. Desenvolve pesquisa sobre a China, tendo realizado pós-doutorado sobre o tema como Visiting Scholar na SOAS-University of London em 2018.