Por Hélio Doyle*
Dois flagelos assolam o Brasil: a pandemia e o governo de Jair Bolsonaro. O presidente deixou claro desde o primeiro momento, por suas posições políticas e ideológicas e pela postura anticientífica, que sob seu comando, a pandemia não seria combatida como se deveria, nos aspectos sanitário e econômico. A tragédia era previsível. Bolsonaro tem sido o maior obstáculo ao enfrentamento da covid-19 e, se houvesse condições políticas, o melhor teria sido afastá-lo da presidência para que se pudesse enfrentar corretamente a pandemia e reduzir seus reflexos na economia.
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O afastamento de Bolsonaro, porém, não se justifica apenas por ter insuflado o desrespeito a medidas sanitárias recomendadas e não tomar as medidas necessárias para assegurar o distanciamento social dos mais pobres e a retomada da economia. O presidente vem acumulando também muitos crimes de responsabilidade, arrolados em quase 40 pedidos de impeachment. E é evidente, como ele mesmo mostra cotidianamente e ficou claro na reunião ministerial, que não tem competência para comandar o país em tempos de recessão.
O mais forte motivo para afastar Bolsonaro da presidência, porém, é seu projeto político, de conteúdo fascista, inspirado pelo seu guia Olavo de Carvalho: destruir as instituições democráticas do Estado e da sociedade civil, alterar a Constituição de 1988, assumir poderes absolutos e reprimir violentamente seus opositores. Um projeto que pressupõe um autogolpe. Por isso, Bolsonaro aposta na polarização e na radicalização, incentiva a militância sectária, violenta e armada e conta, sobretudo, com a cooptação das Forças Armadas para apoiar seu projeto.
Todas as ações e as falas de Bolsonaro e de seus seguidores, entre os quais seus filhos, apontam para o golpe e para um regime fascista. Caso não seja possível concretizar esse projeto antes, as eleições de 2022 serão o momento: ou Bolsonaro se reelege e ganha força política para ter mais poderes em detrimento das instituições democráticas ou, se derrotado, alega fraude e mobiliza suas bases para o golpe.
Destituir Bolsonaro e impedir o avanço do fascismo é o objetivo de democratas de vários matizes, da esquerda à direita. Faltam, porém, as condições objetivas que existiam nos impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff: não há, devido à quarentena, mobilizações populares para pedir o afastamento; não há dois terços dos votos na Câmara para abrir o processo nem dois terços no Senado para aprová-lo; e não há, aparentemente, a disposição da maioria do segmento empresarial e financeiro — que detém o poder de fato e controla o Congresso — em promover o impeachment. Além disso, os parlamentares estão dispersos, reunindo-se virtualmente, o que dificulta conversas e articulações.
A não ser que se estabeleça, como foi no caso de Dilma Rousseff, um consenso entre os segmentos empresariais e seus representantes no Congresso — reunidos em partidos de centro e de direita — para afastar Bolsonaro da presidência e entronizar o general Hamilton Mourão, o impeachment só será viável se houver, sobre o Congresso, forte pressão popular — como foi com Fernando Collor.
É preciso, pois, que voltem a se realizar grandes manifestações populares, em todo o país, para afastar Bolsonaro da presidência e derrotar o fascismo. Mas, infelizmente, ainda não é a hora.
Por que não
É natural e compreensível que os antifascistas estejam ansiosos para ir às ruas e, alguns deles, para confrontar fisicamente os camisas amarelas. É duro para os indignados e revoltados com o desgoverno e suas medidas ver apenas os bolsonaristas ocupando as ruas, enquanto os protestos estão limitados a panelaços, notas de repúdio e protesto, manifestos e alguns atos pontuais, como os dos juristas pela democracia e o dos enfermeiros. Para os opositores de Bolsonaro foi uma alegria ver as torcidas organizadas enfrentando os camisas amarelas, ver resistência nas ruas em Porto Alegre, em São Paulo, no Rio, em Curitiba, em Manaus.
Não é a hora para isso, porém. Ainda estamos enfrentando a pandemia e é necessário manter o distanciamento social e não incentivar aglomerações de qualquer tipo. Ao convocar manifestações de massa, estamos nos igualando aos bolsonaristas, que negam os riscos da covid-19, rejeitam as normas sanitárias e desprezam a saúde e a vida da população. Como temos visto nas manifestações já realizadas por antifascistas, há aglomerações e pessoas sem máscara, o que abre um flanco indesejável para nós.
Por isso, muitos que gostariam de se manifestar nas ruas não atenderão à convocação. Não é responsável chamar as pessoas às ruas, como faz Bolsonaro, mesmo ressalvando os que estão nos grupos de risco. Os democratas devem estar ao lado da ciência e da saúde. Correr o risco de se contaminar não é uma opção pessoal, pois nas manifestações pode haver pessoas doentes, mas sem sintomas, e se alguém se contaminar levará o coronavírus para outros. Como a pandemia reduzirá o número de participantes nas manifestações, os antifascistas poderão estar em desvantagem numérica diante dos bolsonaristas irresponsáveis.
Além disso, manifestações de grupos reduzidos e militantes, em um momento como esse, não mudarão a correlação de forças que impede a destituição de Bolsonaro por impeachment ou ação judicial e nem impedirão o avanço do projeto fascista. Para barrar o fascismo, aumentar a adesão da população ao afastamento de Bolsonaro e obter dois terços do Congresso para aprovar a destituição é preciso realizar grandes manifestações de massa, pacíficas e reunindo pessoas de diferentes posições políticas, como foi nas Diretas Já e no impeachment de Collor. E isso só será possível quando a pandemia arrefecer.
É preciso também estar muito bem preparado para enfrentar a reação dos bolsonaristas, que se organizam para o confronto. Boa parcela dos camisas amarelas que têm saído às ruas é formada por militares e policiais da ativa e da reserva, violentos e armados. Como sempre acontece, haverá infiltrados para provocar e vandalizar, o que será explorado por Bolsonaro a seu favor e afastará ainda mais das ruas os que temem a violência. Deve-se considerar ainda a notória parcialidade das Polícias Militares, que têm protegido os bolsonaristas e reprimido os pró-democracia. Para enfrentar os bolsonaristas à paisana e fardados e minimizar as infiltrações é necessário planejamento, organização, direção e, sobretudo, um grande número de manifestantes.
O projeto de autogolpe de Bolsonaro passa pelo confronto e pela conflagração social. Ele conta com seus apoiadores violentos e armados para vencer os opositores nos confrontos nas ruas, intimidar e enfrentar os democratas e criar o caos social que leve ao estado de sítio ou à intervenção das Forças Armadas a seu favor. Isso não quer dizer que não se deve sair às ruas, mas no momento certo e muito bem preparados para essas circunstâncias.
Que fazer
É preciso mostrar forte resistência ao projeto fascista e golpista de Bolsonaro, mas sem prejudicar o enfrentamento da pandemia e levando em consideração a realidade política. Não há condições para o impeachment agora e a esquerda sozinha ou militantes radicalizados não vão derrubar Bolsonaro e garantir a democracia, mesmo se manifestando nas ruas. A esquerda não tem nem um terço dos deputados e senadores e o Congresso é conservador e predominantemente de direita. Por isso, é preciso formar uma frente capaz de obter os dois terços necessários para autorizar o processo e decretar o impeachment.
Hoje é possível mostrar resistência e somar apoios realizando atos públicos pontuais, simbólicos e criativos, como vêm acontecendo, e nos quais não haja aglomeração; com panelaços e outras formas de manifestações pelas janelas; com eventos virtuais de todo tipo; com manifestos e notas de repúdio e protesto, sim, pois sempre tiveram e têm sua importância. Os democratas têm conseguido acumular forças apesar da quarentena e um exemplo é o manifesto “Estamos Juntos”, já assinado por mais de 270 mil pessoas, da esquerda à direita.
Bolsonaro e seu projeto fascista serão derrotados com uma ampla participação da população e uma forte aliança política, não com a ação de grupos radicalizados. A desejável inquietação quanto ao “o que fazer” e a positiva rejeição ao imobilismo não serão resolvidas lavando a alma por estar indo às ruas. A luta política precisa ser consequente e atingir os objetivos. A questão é que, por mais que agrade ir às ruas, isso, agora, não contribuirá para garantir a democracia e destituir Bolsonaro. Não terá consequências positivas e pode até prejudicar o movimento que vem crescendo a cada dia.
Não é, sobretudo, hora de fazer o jogo de Bolsonaro, que aposta no caos social e no confronto como pretexto para mobilizar as Forças Armadas e viabilizar o golpe que almeja. As manifestações massivas contra o racismo e o fascismo nos Estados Unidos e em países da Europa são alentadoras e também desafiam a pandemia, mas é preciso entender que são realidades sociais e políticas muito diferentes e que não há, nesses países, possibilidades de substituir a democracia por um regime fascista, como aqui.
Há muitas maneiras de se manifestar enquanto a pandemia não reflui, e a hora das ruas chegará. Como ensinou Sun Tzu, não é bom se engajar em ações cujo desfecho é incerto, nem se deve cair nas armadilhas do adversário.
*Hélio Doyle é jornalista, consultor em comunicação e política e professor aposentado da UnB
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