Roseli Faria * e Marivaldo Pereira **
Pelo menos duas coisas muito assombrosas foram reveladas até agora sobre o assassinato de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018.
A primeira triste revelação veio instantaneamente, naquele dia trágico: a de que boa parte das pessoas, mesmo na cidade do Rio de Janeiro, só veio a saber da existência de Marielle por causa do seu assassinato e de uma forma encoberta por uma grossa nuvem de mentiras.
A segunda questão assombrosa é que o crime se revelou uma meticulosa operação de guerra, da qual o assassinato foi apenas a primeira fase de uma sequência de atentados.
Como se sabe, até hoje nada foi esclarecido a fundo. Embora alguns dos assassinos tenham sido presos, os mandantes continuam soltos. E não é por falta de suspeitos nem de evidências. Os delegados responsáveis pelas investigações foram trocados cinco vezes. Testemunhas-chave foram dispensadas. Duas promotoras do Ministério Público do Rio de Janeiro afastaram-se do caso denunciando “risco de interferência externa”.
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Fica claro que a operação que vitimou Marielle foi tramada com um plano que ia muito além da tarefa de metralhar seu carro. São inúmeras as evidências de que foi montada uma operação de guerra também com ações de comunicação e entraves à investigação para encobrir os executores, os mandantes do crime e todos aqueles ligados à política e aos negócios que foram postos na berlinda pela atuação da vereadora assassinada.
Marielle Franco era uma exceção à regra na política brasileira. Mulher, preta e de origem pobre, ela era tudo o que normalmente não se vê, seja no parlamento, seja na cúpula dos governos. Era também quase um milagre que uma defensora dos direitos humanos pudesse se afirmar em meio a uma zona de guerra que só faz sentido para traficantes e milícias. Marielle era uma voz contra o reino do terror que destrói o direito à vida, à liberdade, à igualdade de direitos e de oportunidades.
Pouca gente sabe que, antes mesmo de virar vereadora, Marielle atuou na defesa dos direitos humanos das famílias de policiais que foram vítimas dessa guerra insana, que consome inúmeras vidas. Após seu assassinato, aquele trabalho veio à tona. Primeiro, pelo reconhecimento público dado pelo ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, coronel Robson Rodrigues. Depois, aos poucos, pelos depoimentos de dezenas de mães de policiais assassinados que expuseram sua tristeza com a morte de Marielle, como se estivessem chorando, pela enésima vez, a morte de seus próprios filhos.
O que se sabe, pelas confissões dos próprios envolvidos no assassinato, é que Marielle estava incomodando, e muito. Sua atuação atrapalhava a voraz expansão das milícias. Nas sessões da câmara de vereadores do Rio de Janeiro, viu-se também que ela confrontava a bancada que transformou essa banda podre em heróis condecorados.
É uma dúvida muito razoável a ser levantada a de que a proximidade e mesmo a amizade de Marielle com policiais e famílias de ex-policiais tivessem dado a ela conhecimento de situações que ameaçavam expor milicianos e seus padrinhos políticos. O crime que chocou o Brasil e repercutiu internacionalmente foi motivado por quem se sentiu direta e perigosamente desafiado por ela.
Assim que Marielle foi morta, abriram-se dois novos flancos dessa operação de guerra. De um lado, formou-se uma coalizão do ódio que uniu desde grupos de extrema-direita armada quanto tropas digitais do MBL. Segundos após a notícia do assassinato, eles passaram a inundar a Internet com fake news — na verdade, contrainformação contra Marielle.
O objetivo era claro: abafar ao máximo a notícia principal, que era o assassinato, e facilitar que o algoritmo dos motores de busca e das redes sociais recomendasse esse tsunami de contrainformação para pessoas que tentavam conhecer melhor quem foi Marielle. O festival de mentiras que desonrou o trabalho, a história e memória da ex-vereadora demonstrou que aquilo tudo estava mais premeditado do que nunca.
A cada ano, quando chega o 14 de março, é tempo de lembrar a figura emblemática de Marielle e de todos os que lutam para que o Brasil seja uma terra de direitos e de justiça social. Marielle é o fantasma insepulto que anuncia incansavelmente que há algo de podre no reino do terror, patrocinado pelos que têm a abominável profissão de tramar diariamente a morte de pessoas e da nossa democracia.
* Roseli Faria é vice-presidenta da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e membra da coordenação executiva da Coalizão Direitos Valem Mais.
** Marivaldo Pereira é advogado e presidente do Psol-DF.
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