Luiz Henrique Antunes Alochio*
A Constituição da República Federativa do Brasil outorga ao Congresso Nacional a prerrogativa-dever de sustar atos que exorbitem do Poder Regulamentar. Em sua dicção literal, a Carta Magna refere:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
[…]
V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
A despeito de ocorrer a referência a ato “do Poder Executivo”, na realidade a dicção Constitucional revela o dever de sustação de atos normativos que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa. Nessa toada, pouco parece importar, no contexto normativo, a expressão “do Poder Executivo”.
Acresça-se o fato que à época da edição da Carta Constitucional de 1988 só se permitia visualizar mais facilmente uma exorbitância por parte do Poder Executivo. Todavia, a violação pelo Poder Judiciário não era totalmente desconhecida.
Não se desconhece a tentativa de modificação do texto constitucional nos debates havidos durante o funcionamento do Congresso Constituinte. Especialmente como consta na votação das tentativas de emendas de redação:
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56ª) PR-322 – Brandão Monteiro/D-525 – Vivaldo Barbosa (art. 49, V) – acrescentar a expressão “…, ou do Poder Judiciário,…” após “Executivo”, e substituir a expressão seguinte “…que exorbitem…” por “exorbitantes” – rejeitada, permanecendo o texto do Relator;[1]
A proposta fora assim debatida:
O SR. CONSTITUINTE VIVALDO BARBOSA: – Sr. Presidente, página 140, artigo 49, inciso V: “Sustar os atos normativos do Poder Executivo…” A emenda do Constituinte Brandão Monteiro visa acrescentar “ou do Poder Judiciário, exorbitante do poder regulamentar ou doa limites da delegação legislativa”. O Poder Judiciário, pelo texto da nova Constituição, adquiriu autonomia administrativa e financeira, impondo a ele a prática de atos normativos que podem, efetivamente, assim como acontece no Poder Executivo, também exorbitar das suas atribuições constitucionais. De maneira que o Poder Legislativo – é uma falha que precisa ser suprida no texto – não pode se furtar, de ter o poder de suspender esses atos, do Poder Judiciário, que exorbitem desse poder regulamentar. É uma das atribuições mais expressivas que o Congresso Nacional deve preservar. Entendendo que o texto foi lacunoso, nesta parte, o Constituinte Brandão Monteiro fez a sua proposição.
O SR. RELATOR (Bernardo Cabral): – Pela rejeição, Sr. Presidente.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Pela rejeição. Quem estiver de acordo com o Relator mantenha-se como se acha. (Pausa). Aprovado.
O SR. RELATOR (Bernardo Cabral): – Seria ótimo que tivéssemos aprovado isso no texto, mas, infelizmente é matéria nova. [2]
E ainda discutiram a redação de outro dispositivo, logo em seguida:
O SR. CONSTITUINTE VIVALDO BARBOSA: – Ainda no artigo 49, também na página 140, inciso X, atendendo a uma sugestão de redação, feita na semana passada pelo Constituinte Bonifácio de Andrada, propõe o Constituinte Lysâneas Maciel substituir a expressão “Poder Executivo” por “Poder Público Federal” para também tornar mais consentâneo, mais aberto, mais abrangente o poder fiscalizador do Congresso Nacional.
O SR. RELATOR (Bernardo Cabral): – Eminente Constituinte Vivaldo Barbosa, ao se trocar “Atos do Poder Executivo” por “Poder Público Federal” vamos incluir o Poder Judiciário, vai dar na mesma circunstância. E mérito. De modo, Sr. Presidente, que somos pela rejeição.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O parecer do Relator é pela rejeição. (Pausa) Aprovado. [3]
Vejamos que a rejeição não foi de mérito, mas de forma. Quanto ao mérito, se assim fosse considerado, os registros do debate constituinte informam a relevância do tema, como se nota
O SR. RELATOR (Bernardo Cabral): – Seria ótimo que tivéssemos aprovado isso no texto, mas, infelizmente é matéria nova. [4]
A questão a definir: a não inclusão explícita teria, per se, o condão de não ser suprida pelo contexto da regra? Seria matéria nova ou mera situação a ser compreendida no contexto do dispositivo? Reiterando o ponto nevrálgico: não houve rejeição de mérito, de conteúdo.
Prossigamos na tentativa de análise.
Não é desconhecida a Teoria dos atos próprios, predominantes ou típicos, e dos atos especiais, anômalos ou atípicos no exercício dos Poderes (órgãos de desempenho de funções públicas). JUSTEN FILHO[5] adverte para a “impossibilidade de separação absoluta de Poderes”:
“O sistema de separação de Poderes cumpre melhor sua função na medida em que não haja um Poder absolutamente preponderante sobre os demais. A essência do princípio está na separação harmônica e na conjugação de Poderes.
Por outro lado, a independência absoluta de cada Poder geraria efeitos negativos, pois isso dificultaria seu controle.
Ademais, não há meio prático de impor que cada Poder (conjunto de órgãos) exercite um único tipo de função.
Por isso, cada um dos Poderes exercita preponderantemente, mas não exclusivamente, um tipo de função.
[…]
O Poder Judiciário também dispõe de poderes de natureza legislativa. A ele são reservadas certas competências no tocante à iniciativa de leis relevantes para fins judiciários. E, no âmbito interno, pode editar regulamentos para disciplinar seus serviços administrativos.”
No mesmo sentido, BANDEIRA DE MELLO[6] refere que “as funções legislativas, administrativas (ou executivas) e judiciais estão distribuídas, entre três blocos orgânicos, denominados “Poderes”[…]”.[7] Esses órgãos de exercício de funções absorvem com “manifesta predominância, as funções correspondentes a seus próprios nomes: Legislativo, Executivo e Judiciário”.[8] E arremata com precisão:
“Esta trilogia não reflete uma verdade, uma essência algo inexorável proveniente da natureza das coisas. É pura e simplesmente uma construção política invulgarmente notável e muito bem-sucedida, pois recebeu amplíssima consagração jurídica. Foi composta em vista de um claro propósito ideológico do Barão de Montesquieu, […]. A saber: impedir a concentração de poderes para preservar a liberdade dos homens contra abusos e tiranias dos governantes.” [9]
Se, conforme BANDEIRA DE MELLO, a distribuição das funções públicas se dá em benefício das liberdades, então é essencial recordar, para o assunto específico que nos interessa, de como MONTESQUIEU[10] trata o tema quanto ao Poder Judiciário:
“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo é reunido ao Poder Executivo, não há liberdade alguma, porque pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado produza leis tirânicas para pô-las em execução.
Não há ainda liberdade alguma se o poder judiciário não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida, a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.”[11]
Como se nota, o Poder Judiciário tem como atos próprios, ou típicos, a prestação de jurisdição; todavia, possui, ainda que excecionalmente, a possibilidade de administrar sua gestão interna (função executiva lato sensu) e regulamentar procedimentos (função normativa lato sensu). São atos atípicos que, todavia, não se podem presumir sem controle. E, obviamente, não ocorrem nos moldes dos atos típicos. Os atos de jurisdição são controláveis pela via de recursos e reclamações. Os atos atípicos devem seguir as regras que lhes são peculiares, a depender do ato praticado.
Por uma tal razão, não seria estranho falar em sustação, pelo Congresso Nacional, de atos do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, quando, verbi gratia, no exercício de uma função normativa atípica, exorbitassem os limites e as fronteiras do mero poder regulamentar.
A interpretação aqui versada não passa imune a comentários da doutrina:[12]
“No ordenamento constitucional brasileiro não há espaço para uma Administração que tenha como reitora de seu proceder qualquer outro paradigma para além da lei aprovada pelo Poder Legislativo. A atividade administrativa é sempre e imediatamente sub-legal, subalterna à lei, escrava mesma da lei.
[…]
Atualmente, em função do desenvolvimento do nosso constitucionalismo, a redação do inciso V do artigo 49 da Constituição mostra-se bastante insuficiente, pois limita a atividade de controle do Congresso Nacional sobre o exercício do poder regulamentar do Executivo. Tal circunstância representa um apequenamento tanto do Legislativo, quanto do Executivo, numa grave situação de desbalanceamento entre os poderes que deveriam ser harmônicos entre si.
Isso porque, desde 1988, foram reconhecidas ao Judiciário, ao Ministério Público, aos tribunais de contas e, mais recentemente, à Defensoria Pública, diversas competências normativas, cujo exercício não se encontra ameaçado de sanção por uma norma assemelhada à do artigo 49, inciso V, da Constituição. Em rigor, e numa interpretação que respeita os limites semânticos do texto da Constituição, na hipótese de exorbitar dos limites do poder regulamentar, apenas o Executivo está sujeito a ter seus atos normativos sustados pelo Legislativo.
A menos que se admita que, para além do Executivo, os demais poderes e funções do Estado escapam à lógica de Montesquieu, pois tomados por suposta infalibilidade, é preciso urgentemente que o Congresso Nacional assuma de fato e de direito o papel de potencial restrição e sustação de atos regulamentares praticados pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pelos tribunais de contas e pela Defensoria Pública. E deve-se registrar a gravidade dessa lacuna no caso do Poder Judiciário, com relação à sua atividade administrativa, fica de fato isento de qualquer controle, na medida em que qualquer questionamento de seus atos regulamentares desaguará única e exclusivamente no próprio Poder Judiciário. Ora, é certo que não se há de acreditar que os juízes são iluminados e infalíveis, de modo que essa lacuna põe em risco a própria noção de Estado Democrático de Direito. […]”
A única divergência que mantemos com o texto doutrinário citado é no sentido de não ser necessária qualquer proposta de emenda constitucional. Mesmo se estivéssemos diante da mais ferrenha interpretação textual do conteúdo do Inciso V do art. 49 da CF/88, salta aos olhos que o ponto nevrálgico do dispositivo constitucional em referência objetiva o controle contra a infração na exorbitância do poder regulamentar, e não tem como elemento principal o Poder Executivo.
Mesmo que fôssemos ferrenhos textualistas, deveríamos recordar a lição de SCALIA:[13] “To be a textualist in a good standing, one need not too dull to perceive the broader social purpose that a statute is designed, or could be designed, to serve; or too hidebound to realize that new times require new laws.”[14] Certo é que SCALIA remata no sentido de não poder ser o juiz quem irá fazer estas leis. Nesta toada, o pranteado Associate Justice de igual modo esclarece que o textualista não pode ser nenhum dos extremos: um literalista ou um nihilista.[15] E traz um exemplo:[16]
“Take, for example, the provisiono of the First Amendment tal forbids abridgment of “the freedom of speech, or of the press.” Thar phrase does not list the full range of communicative expression. Handwritten letters, for example, are neither speech or press. Yet surely there is no doubt they cannot be censored. In this constitutional contexto, speech and press, the two most commom forms of communication, stand as a sorto f synecdoche for the whole.”[17]
De toda sorte, em linhas singelas, mesmo o Poder Judiciário pode, ainda que em hipóteses remotas, praticar a exorbitância no poder de regulamentação ou a extrapolação de delegação legislativa.
Não é recente, ainda que a partir de outros paradigmas, o reconhecimento por parte do Poder Judiciário, que não lhe cabe a posição de legislador positivo:
[…] A Corte Constitucional só pode atuar como legislador negativo, não, porém, como legislador positivo. Precedente. Agravo Regimental improvido. (AI 137380 AgR, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Segunda Turma, julgado em 24/05/1994, DJ 02-12-1994 PP-33199 EMENT VOL-01769-02 PP-00266)
O problema ora analisado toma plena força e importância a partir dos questionamentos decorrentes da PORTARIA GP 69, DE 14 DE MARÇO DE 2019, da lavra do Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli.
O fundamento normativo para a edição da Portaria em comento, e isso consta do próprio documento, é o art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF).[18] É prudente a leitura do dispositivo:
Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
- 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
- 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.
Façamos duas conjecturas, apenas para o debate da possibilidade de um Decreto Legislativo, se — e somente se — houvesse excesso regulamentar. Primeiro, não parece ter havido infração penal ocorrida na sede ou dependência do Tribunal. Em segundo lugar, e mais importante, se o RISTF tivesse de fato tamanha extensão, como pretendida na Portaria, não poderia ser, ao menos em tese, averiguada pelo Congresso uma infringência aos limites regulamentares típicos de um regimento? Ao menos num primeiro momento, não parece haver regra primária que albergue a extensão daquela regulamentação no Direito Brasileiro.
Como referido, não se apresenta uma avaliação exauriente da Portaria. Apenas se busca saber se, em tese, seria possível, pelo Congresso Nacional, imaginar a sustação de atos que exorbitem do poder regulamentar, caso oriundos do Poder Judiciário, do Ministério Público ou dos Tribunais de Contas.
O presente texto traz ao debate o problema de possíveis atos do Poder Judiciário, atos não jurisdicionais, que possam, ainda que em tese, ser enquadrados no espectro da exorbitância dos atos administrativos, cujo controle é inerente ao Parlamento.
O momento para o debate parece propício. Se de um lado o Poder Judiciário tem sido extremamente elogiado pela sociedade — ex. Operação Lava Jato —, igualmente não está imune a críticas.
A proeminência na arena democrática tem dessas coisas. Passa o Judiciário a receber os holofotes e as atenções que antes não recebia. Por isso mesmo, novas funções exercidas acabam demandando novos meios de controle ou que se repensem os freios e contrapesos tradicionais.
Esse texto traz, essencialmente, dúvidas para um debate.
*Doutor em Direito (Uerj) e Procurador Municipal (Vitória/ES).
16 de julho, o dia do quinto constitucional
Ativismo judicial: entre a necessidade e o excesso
[1] http://www.senado.leg.br/publicacoes/GeneseConstituicao/pdf/genese-cf-1988-1.pdf
[2] https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/redacao.pdf (vide fls. 223)
[3] https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/redacao.pdf (vide fls. 223)
[4] https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/redacao.pdf (vide fls. 223)
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Saraiva. 2005, p.24.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 2002.
[7] BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 28.
[8] BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 29.
[9] BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 29.
[10] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Edipro. 2004.
[11] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Livro XI. Capítulo VI.
[12] LUCIANO, Pablo Bezerra; ROCHA, Vanessa Affonso. Congresso pode derrubar “atos normativos” do Judiciário. Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2015. https://www.conjur.com.br/2015-ago-25/congresso-poder-derrubar-atos-normativos-judiciario
[13] SCALIA, Antonin. A matter of interpretation. Princeton University Press. 2018, p. 23
[14] “Para ser um textualista de boa reputação, não é necessário muito enfado para que se entenda o propósito social mais amplo para o qual um estatuto é concebido, ou poderia ser concebido, para servir; ou muito obstinado para perceber que os novos tempos exigem novas leis.” (tradução livre nossa)
[15] SCALIA, Antonin. A matter of interpretation. Princeton University Press. 2018, p. 24
[16] SCALIA, Antonin. A matter of interpretation. Princeton University Press. 2018, p. 37-38.
[17] “Tomemos, por exemplo, a provisão da Primeira Emenda que proíbe a restrição da “liberdade de expressão ou de imprensa”. Essa frase não lista toda a gama de expressões comunicativas. Cartas manuscritas, por exemplo, não são nem discurso ou imprensa. No entanto, certamente não há dúvida de que elas não podem ser censurados. Nesse contexto constitucional, o discurso/expressão e a imprensa, as duas formas mais comuns de comunicação, permanecem como uma sinédoque para o todo ”. (tradução livre nossa)
[18] Não se desconhece a jurisprudência da recepção do Regimento do STF com força de lei, para as questões de natureza processual. Vide, v.g., AI 727.503 AgR-ED-EDv-AgR-ED, rel. min. Celso de Mello, j. 10-11-2011, P, DJE de 6-12-2011. Ocorre que não parece ser um dispositivo de natureza processual. Todavia, não ingressaremos nesta seara pois, de fato, a pretensão do texto é analisar a estrita possibilidade de sustação de atos (não jurisdicionais) que, originados do Poder Judiciário, exorbitem o poder regulamentar.
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