Celso Lungaretti*
O ex-marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos – que, apesar do apelido, nem sequer o posto de cabo alcançou –, morreu pela quarta vez, na última 3ª feira (15) de mal súbito, aos 80 anos, no município paulista de Jundiaí. Por lá, ele morava sob o nome falso de Alexandre da Silva Montenegro.
Sua primeira morte (a moral) se deu no período pré-golpe militar, quando aceitou atuar como agente provocador do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar, para insuflar movimentos de protesto da marujada, ajudando a criar o clima para a quartelada tramada pela extrema-direita desde a década de 1950 e tentada sem êxito em agosto de 1961.
Um agente duplo, com calculismo e desfaçatez, conquista a confiança de outras pessoas para frustrar seus objetivos, traí-las e desgraçá-las. Que tipo de gente quer uma vida destas?
E o que já era ruim no tempo da conspiração contra o então presidente João Goulart, ficou ainda pior quando Anselmo passou a agir na luta armada como um anjo exterminador daqueles com quem atuava e convivia, chorava junto às tragédias e confraternizava junto nos triunfos, até engravidava.
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Como nossas funções na organização nada tinham em comum, não fiquei conhecendo pessoalmente Anselmo. Mas, soube muito dele por relatos de outros companheiros, principalmente daquele que era seu melhor amigo e protetor.
Tendo ingressado na Vanguarda Popular Revolucionária em abril de 1969, morei durante algumas semanas com o José Raimundo da Costa (o Moisés, que seria lembrado como o último comandante da VPR), num apartamento que alugamos em meu nome real e tivemos de abandonar às pressas ao constatarmos que não só minha identidade já era conhecida pela repressão, como ambos aparecíamos com fotos nos cartazes de procurados pela ditadura.
Moisés, que havia sido outro dos líderes dos movimentos da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, acreditava piamente que as suspeitas em circulação na esquerda a respeito do Anselmo (vários dos seus ex-colegas na Armada sustentavam que ele sempre servira à comunidade de informações) não passariam de calúnias do Partido Comunista Brasileiro.
Após o golpe, Anselmo pediu asilo na embaixada mexicana. Mas logo mudou de ideia e, embora fosse uma das pessoas mais procuradas do país, saiu andando calmamente de lá, sem ser detido.
Algum tempo depois foi preso, exibido como troféu pela ditadura… e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, segundo o jornalista/historiador Elio Gaspari, “Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar”. A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar:
“Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, o visitando no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido.”
Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.
O grande jornalista Jânio de Freitas assim comentou tal episódio:
“O compreensível ódio da oficialidade desacatada pelos marinheiros, logo na mais classista das forças militares, transmudou-se em represália feroz quando o golpe possibilitou a prisão da marujada rebelde. Masmorras e prisão nas piores condições em navios foram o destino comum dos apanhados.
Não, porém, para o maior incitador da rebelião e das ameaças à oficialidade: Anselmo foi posto em um pequeno e pacato distrito policial na orla da floresta do Alto da Tijuca, sem vigilância especial, e disponível para seus visitantes.
Em poucos dias, não precisou de mais do que sair pela porta para a liberdade. Os visitantes perderam a sua nos dias seguintes”.
Mas, com a imprensa amordaçada e não existindo ainda a internet, informações como esta se misturavam à intensa boataria e era quase impossível separar-se o joio do trigo, daí o descrédito do Moisés – mesmo porque o PCB lhe dava motivos de sobra para desconfiar de tudo que dele provinha, tendo chegado ao cúmulo de, no seu principal jornal, apontar o comandante Carlos Lamarca como agente da CIA, golpe baixo para evitar que seus militantes prestassem ajuda solidária à VPR.
Assim, Moisés se referia com carinho a Anselmo, o descrevendo como um militante bem intencionado, cujo grande defeito seria gostar muito de aparecer. Aliás, sendo sargento e lhe convindo, portanto, exercer sua influência discretamente, Moisés transmitia a Anselmo o conteúdo político dos discursos inflamados que ele deveria proferir e depois ficava só observando o desempenho daquele que ele supunha ser seu melhor boneco de ventríloquo.
Tendo ido treinar guerrilha em Cuba após sua fuga, Anselmo ficou menos falado por aqui durante alguns anos. Moisés permaneceu irredutível na convicção de sua inocência até agosto de 1971, quando pagou caro por ela: depois de haver sobrevivido durante sete anos à perseguição da ditadura, foi atraído para uma emboscada por Anselmo e acabou sendo capturado vivo, hipótese que sempre descartava (ele me garantia que se faria matar antes disto).
Os suplícios que certamente sofreu na Casa da Morte de Petrópolis, sabendo que no final da linha estava sua execução, me davam pesadelos quando escrevia o Náufrago da Utopia e era obrigado a evocar de novo esses terríveis episódios. Nos piores momentos da minha temporada no inferno, eu tinha pelo menos a esperança de sobreviver e um dia enfrentar de novo aqueles inimigos. Moisés nem isto tinha.
Com sua morte, a autodissolução da VPR e o caos instalado entre os dispersos remanescentes da luta armada, Anselmo conseguiu incrivelmente permanecer ativo no seu ofício por mais um ano e meio.
Eis como Élio Gaspari relatou, em A Ditadura Escancarada, a mais lembrada de suas missões, até porque não hesitou em sacrificar a militante paraguaia com quem vivia e estava grávida dele, Soledad Viedma Barrett:
“A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (…) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia.
Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (…). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (…) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.”
Foi a segunda morte de Anselmo: a operacional. A partir daí, não conseguiria iludir mais ninguém na esquerda, então passou a ser um ocioso sustentado e protegido por delegados do Deops paulista, às vezes conseguindo um dinheirinho extra com entrevistas e livros que profissionais escreviam sobre ele ou no lugar dele.
Ainda o requisitaram para uma tentativa de desqualificação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça: ele pediu anistia em 2004 e, caso esta lhe fosse negada, a rede de extrema-direita poderia fazer muito alarido alegando parcialidade do colegiado.
A comissão percebeu a armadilha; por seus critérios, Anselmo teria mesmo direito a uma reparação se houvesse trocado de lado apenas ao ser preso pelo delegado Sergio Fleury em maio de 1971, conforme sustentara em suas entrevistas e livros – isto porque sua vida teria saído dos trilhos a partir da instauração de um governo ilegítimo e, portanto, seria também uma vítima da ditadura, mesmo havendo se tornado seu ignóbil serviçal.
A possibilidade de agraciar quem levara à morte os verdadeiros resistentes (embora nem de longe suas vítimas chegassem a “100, talvez 200”, como ele trombeteava repulsivamente) era tão desagradável para a comissão que ela retardou a marcação do julgamento do caso do Anselmo até lhe chegarem às mãos (em 2012) evidências conclusivas no sentido de que ele já era agente duplo quando foi dado o golpe e, portanto, não fazia jus a um centavo sequer.
A verdade foi estabelecida a partir de documentação secreta do Serviço de Inteligência da Aeronáutica, de papéis recebidos do Arquivo Nacional e de um depoimento do ex-delegado Cecil Borer no sentido de que Anselmo era mesmo um infiltrado, comprovando de viva voz o que sempre se suspeitara: não passava de farsa a alegada fuga do marinheiro da delegacia carioca na qual estava detido em maio de 1966, pois ele havia sido simplesmente solto.
Esta foi a terceira morte do Cabo Anselmo: a dos últimos fiapos de credibilidade que porventura lhe restassem. Só ingênuos dali em diante acreditariam em suas fantasias hediondas e só ultradireitistas fanáticos comprariam sua pseudo-autobiografia de 2015, Minha verdade, que merecidamente encalhou por não passar de um amontoado de mentiras já desmascaradas.
Ao tomar conhecimento de sua quarta morte, a imagem que veio à mente foi a transformação que ocorre com Dorian Gray após esfaquear o quadro, no romance famoso do Oscar Wilde. Será este o motivo de só terem anunciado o óbito depois do enterro, ou minha imaginação voou longe demais?
*Celso Lungaretti é Jornalista, blogueiro, escritor e anistiado político, que em 1969/70 foi comandante de Inteligência da VPR
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