Extraindo da mina ideológica de seu preconceito, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, propôs a criação de uma esdrúxula aliança separatista Sul-Sudeste, tendo como inimigo o Norte-Nordeste. Infelizmente, ele não está sozinho em sua escancarada xenofobia. Tampouco apenas na companhia do desembargador paranaense que se autoproclamou nascido em lugar com “nível cultural superior ao Norte e Nordeste”.
Também caminha na parceria do perdoado vereador da gaúcha Bento Gonçalves que defendeu o criminoso trabalho análogo à escravidão praticado em face dos nordestinos “baianos”. Ou ladeado pelas vozes que urraram impropérios contra os nordestinos após os recentes resultados eleitorais. Faz coro com a advogada catarinense que me confundiu com o garçom, exigindo rispidamente água, para após pronunciar a sua imperdível frase: “Não saia daqui, pois acho que o evento vai demorar para começar. É sempre assim com esses nordestinos preguiçosos, acho que esse tal presidente sergipano deve ainda estar dormindo no quarto”.
Não! Essas falas xenófobas são repetidas a todo tempo, conscientes ou não. Escutei várias delas durante o período em que a advocacia me permitiu presidir a OAB. Alguns dirigentes do Sudeste e do Sul, felizmente minoritários, acreditavam que seriam prejudicados com a Unificação do Exame de Ordem que implementei, na preconceituosa ilógica de que as provas teriam que ser mais fáceis, para que os inscritos nas outras regiões pudessem ser aprovados. E mesmo quando a Unificação mostrou que eles estavam equivocados, pois as instituições de ensino do Nordeste apareceram entre as melhores e com as maiores médias de aprovação por Seccional da OAB, continua-se a atacar os saberes produzidos no Norte-Nordeste. Tanto assim que, após uma palestra, fui procurado por um entusiasmado advogado sulista, olhando-me com a admiração refletida em seu forte aperto de mão, soltou a sua elogiosa pérola: “Parabéns Britto, o senhor mudou a minha opinião sobre os nordestinos. É que eu não sabia que havia pessoas inteligentes no Nordeste. Vou contar ao pessoal sobre o senhor e eles também irão mudar de opinião”.
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O triste é saber que esses fatos simbolizam apenas a ponta de um iceberg cada vez mais visível no jeito brasileiro de degustar os seus preconceitos, fazendo aflorar uma gélida e fluente montanha de agressões e crimes. Os episódios aqui narrados têm em comum a xenofobia estrutural que teima em permanecer ativa no coração brasileiro, ainda quando disfarçada em involuntário elogio. Preconceitos que, repetidamente, são zurrados em chavões nada inocentes, como: “o seu sotaque é engraçadinho”, “os nordestinos entendem mesmo é de festa”, “apesar de pobre é limpinho”, “negro de alma branca”, “negro de primeira estirpe”, “futuro ou passado negros”, “ela é inteligente, apesar de mulher”, “ela não merece ser estuprada”, “só podia ser essa gorda e feia”, “até que ele não é um índio preguiçoso”, “eu até tenho um amigo gay”, “pobre é tudo igual”, dentre outras. Sentir-se superior é, sem dúvida, o primeiro sintoma dos crimes e preconceitos que assustam o Brasil e o mundo, ameaçando a nossa própria sobrevivência enquanto humanidade.
O Brasil tem uma das mais eficientes legislações de combate ao crime de racismo, à xenofobia, ao preconceito e à violência contra a mulher. Mas os que têm a raça, a cor, o gênero ou o local de nascimento do preconceito sabem que o Brasil não é o paraíso da igualdade que costuma declamar em versos e prosas. Os símbolos nazistas que voltam às ruas, a apologia ao estupro que recebe milhares de apoios, os nordestinos que são atacados e responsabilizados pelos resultados negativos do país, a homofobia assassina que estampa as manchetes policiais, o feminicídio que segue envergonhando as estatísticas oficiais e os negros que permanecem sendo tratados como desiguais, desmontam qualquer ufanista mito do Brasil justo. O enfrentamento da questão, portanto, não está restrito ao campo da lei, até porque, como nos adverte a história, é mais fácil mudar uma lei do que a cabeça do ser humano.
Não que as leis sejam desnecessárias para se combater os crimes estruturais. Elas são mesmo fortes aliadas. O problema é a que a guerra da resistência se torna complexa ao ter um inimigo entrincheirado em mentes doentias, como se fosse um vírus oculto, insensível à vacina da consciência. Mesmo quando os gestos e as palavras revelam os sinais claros desta grave doença, o seu portador não se percebe doente. Ao não perceber a doença que contamina até a sua alma, ele a repassa para as outras pessoas, tranquilamente, sem qualquer remorso pela sensação de cometimento de um crime. E assim Zema e seus parceiros espalham os seus incontáveis preconceitos, dia a dia, fazendo valer a máxima de Bob Marley: “Que país é esse onde o preconceito está guardado em cada peito? Que país é esse onde as pessoas não podem ser iguais, devido a suas classes sociais?”. Ou do lugar do seu nascimento.
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