Há 11 anos sem fazer seu check-up regular, o Brasil já está sem diagnóstico preciso e poderá sofrer, no próximo ano, uma espécie de apagão estatístico graças ao governo Bolsonaro que cancelou o censo já atrasado. Em 2020 foi postergado, por causa da pandemia, mas neste ano foi cancelado para que a verba, de quase R$ 2 bilhões, expanda os gastos do Ministério da Defesa
. O Brasil pode ficar como países sem estatísticas confiáveis, como o Afeganistão ou a Líbia, pois é bom lembrar que nem a nossa contagem populacional foi atualizada desde 2010, ano em que, aliás, o IBGE foi premiado por realizar o primeiro censo digital do mundo, graças às tecnologias de informação.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é um dos mais longevos e respeitados órgãos técnicos do Estado brasileiro. Instituído em 1936 e composto por um quadro técnico de altíssima qualidade, o IBGE passou a ser a principal bússola para o necessário monitoramento da demografia brasileira e para o planejamento de políticas públicas nas três esferas de governo. E não só para o poder público. São essas estatísticas que dão bases à economia, aos investimentos, aos bancos internacionais de fomento ao desenvolvimento.
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Além das pesquisas econômicas e sociais, de metodologia sofisticada, o IBGE realiza, a cada dez anos, o censo demográfico brasileiro, seguindo inclusive o que prevê a Constituição. É o nosso principal e mais preciso instrumento de produção do retrato da demografia brasileira. Para um país populoso e de tamanho continental, de grande diversidade geográfica, com diversas comunidades vivendo em áreas isoladas e de difícil acesso, o censo se constitui em elemento essencial para que a democracia brasileira, caracterizada pela relação interfederativa, funcione adequadamente.
Os dados revelados pelo censo permitem, por exemplo, a adequada distribuição de recursos entre diferentes regiões, como também a orientação de políticas públicas mais eficientes, nas três esferas de governo. Bom registrar que a realização do censo é tão importante à formação do Estado brasileiro, que antecede mesmo à criação do próprio IBGE, pois é feito desde 1872 e nunca sofreu interrupção ao longo do tempo.
Pois bem, o atual governo federal, que tem dilapidado, de forma irresponsável, os ativos e o patrimônio público nacional, com privatizações absurdas, além do desmantelamento de políticas públicas nacionais historicamente vitoriosas, do enfraquecimento das relações federativas e de instituições e órgãos federais, agora corta R$ 1,76 bilhão dos R$ 2 bilhões previstos para a realização do censo que já tinha sido adiado no ano passado. Além de inviabilizar a realização do censo este ano, tal medida traz um cenário de severas imprevisibilidades.
Para os municípios, que são as unidades administrativas de maior proximidade com a população, por exemplo, a não realização do censo trará um conjunto de incertezas e riscos, a começar pelas transferências federais obrigatórias como, por exemplo, o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), uma das principais fontes de receitas municipais. A não atualização das informações do censo pode produzir repasses de FPM injustos e desequilibrados.
A própria gestão das cidades será afetada. Por exemplo, a abertura e a localização geográfica de vagas em creches e escolas, as campanhas de imunização, a alocação de médicos na atenção básica e de novos serviços de saúde, as ações de estímulo à geração de emprego e renda, o escopo e as prioridades das políticas de assistência social, a definição dos planos de transporte público e mesmo as ações de planejamento urbano, dependem fundamentalmente de dados censitários do IBGE. Nos estados, os futuros governos iniciarão mandatos às escuras.
São essas consequências danosas ao cotidiano dos brasileiros, aos investidores, aos organismos internacionais. Até porque o censo, mais que uma simples pesquisa, é uma oportunidade de o Brasil se conhecer e permitir que governos e a sociedade ajam no sentido de modificar os rumos do País nas dimensões necessárias, em um momento de pandemia global.
Infelizmente, as incertezas quanto ao prazo da realização do censo não parecem ser um acidente ocasional, mas parte de um projeto político de desmoralização e auto destruição do Estado brasileiro, sob a batuta do atual governo, que patrocina um projeto fundamentado numa visão liberal tosca e intelectualmente ignorante, que despreza a nossa história democrática, desmonta instituições do Estado, e a sua respectiva capacidade de agir como promotor de mais justiça e oportunidades, além de expulsar investidores.
O Supremo Tribunal Federal (STF), felizmente, determinou a realização do censo para 2022. O IBGE informou que cumprirá a ordem, mas já declarou que o orçamento terá que ser recomposto. O IBGE poderia fazer o censo ainda neste ano, caso tenha o orçamento recomposto. Precisamos reagir aos ataques a essa destruição do Estado brasileiro. Ele é de todos nós e sem sua força e vitalidade, viveremos sob a tutela e a barbárie social imposta por um poderoso pedaço de uma elite brasileira insensível às nossas diferenças e necessidades e, ao que parece, despreocupado com um apagão estatístico em um país de dimensão continental.
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