Numa cidade do interior do Piauí ouvi de um eleitor que, com a eleição de um novo prefeito, finalmente seria construída uma estrada que passaria pelas terras dele, eleitor. O que daria fim ao tormento da estrada de terra que levantava poeira na seca e virava atoleiro na época de chuva. “A garantia de que ele vai construir é que essa estrada também vai passar pela fazenda dele”. “Mas isso é uso do dinheiro público em causa própria, isso é crime!”, reagi. “Crime coisa nenhuma. Quem ganha eleição tem direito de se compensar! Senão, para que serve gastar dinheiro com gasolina, cartaz, camiseta, santinho, sola de sapato, comprar voto – e olha que voto é bicho caro! – e ser eleito?”
A história exemplifica a introjeção, no imaginário brasileiro, da “normalização” do uso do dinheiro público em benefício próprio por parte da classe política. Tudo normal, normalíssimo! Nada diferente do escândalo que o país acaba de assistir. De uma garfada só, R$ 1,2 bilhões foram retirados, em apenas dois dias, da saúde, da educação, dos transportes e de mais onde esses recursos são mais necessários. Esse dinheiro foi parar nos bolsos dos deputados que se venderam para votar favoravelmente a uma emenda à Constituição que permite ao governo dar um calote nas dívidas que o estado tem com os cidadãos.
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Se alguém vier dizer que eles não puseram dinheiro no bolso, reaja dizendo assim: “Essas emendas vão para os redutos eleitorais deles, ou seja: vão assegurar a reeleição deles no ano que vem. Reeleição significa que vão continuar a usufruir do bem-bom dos altos salários e de mordomias como passagens, despesas de correio e telefone, apartamentos funcionais, cargos nos gabinetes para nomear quem quiserem e até combustível para carros e aviões. Logo, é roubo do mesmo jeito, só muda a forma de meter a mão no bolso do povo.
E mais: quando uma pessoa se sente lesada no valor da sua aposentadoria, recorre à justiça e ganha a causa, o governo é obrigado a pagar o que lhe é devido. O nome dessa dívida é precatório. Logo, se a PEC (do calote) dos precatórios for aprovada, o governo não vai ser obrigado a pagar coisa alguma”.
Mas, desta vez, o descaramento dos nobres parlamentares, com o presidente da Câmara, Arthur Lira, um dos caciques do Centrão, atrás do balcão distribuindo a dinheirama em forma de emendas e os digníssimos parlamentares vendendo votos e consciências chegou a um nível tão vergonhoso que o Supremo teve de dar um grito e botar ordem no galinheiro. Ora, se vender votos é crime numa eleição comum, por que não seria numa votação dentro das dependências do Congresso? A ministra Rosa Weber exibiu a podridão, enquanto coube à grande imprensa – sim, a nobre, velha, injustiçada e vilipendiada grande imprensa – denunciar o escândalo com todos os dados, conforme a ótima reportagem do Estadão. Segundo a Associação Contas Abertas, com base nos dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) só em dois dias da semana passada, quando o balcão da venda de votos foi aberto por Arthur Lira (PP-AL), foram empenhados para emendas de relator nada menos que R$ 909,7 milhões.
Cada parlamentar “beneficiado” mandou para as suas bases eleitorais cerca de R$ 15 milhões. Com uma agravante: se o ralo não for tapado, R$ 18,5 bilhões seguirão pelo mesmo caminho, através das tais de emendas de relator, já previstas no orçamento, das quais não se conhece o parlamentar-autor nem o local do Brasil onde esse dinheiro vai parar.
Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a farra por 30 dias, exigindo que os valores dessas emendas, seus beneficiários – os nobres parlamentares – e os redutos que receberão os recursos sejam conhecidos, em nome da transparência. Até porque, como se sabe, o melhor desinfetante é a luz do sol. A boa notícia é que, com a suspensão determinada pela ministra, Arthur Lira não tem como garantir a entrega da mercadoria que está vendendo. Ninguém é bobo de comprar terreno na lua, não é? Sem mercadoria fica difícil garantir os votos, pela (fisio)lógica que caracteriza a atuação de grande parte de suas excelências. E assim, a PEC do calote dos precatórios subiu no telhado.
Mas há um dado que enoja ainda mais a tramoia. O governo quer guardar o dinheiro dos precatórios para garantir o tal de Auxílio Brasil, que pretende substituir o Bolsa Família, um programa tão bom que é copiado internacionalmente. Mas Bolsonaro deu com os burros n’água. Faltou previsão orçamentária, ou, trocando em miúdos, faltou dinheiro em caixa para garantir o pagamento. O jeito foi furar o teto de gastos. É como se ele fizesse o Brasil entrar no cheque especial. O fedor se eleva ao nível da revolta quando se sabe perfeitamente que a “ajuda aos mais necessitados” não passa de manobra eleitoreira destinada a garantir votos para a reeleição de Bolsonaro.
Aqui entre nós: se quem compra voto é criminoso, como é que se chama quem se serve da fragilidade dos mais necessitados em benefício próprio? Cretino? Nojento? Insensível? Oportunista? Canalha? Ou alguém vai dizer que os dignos parlamentares apenas estão fazendo seu papel e retribuindo os votos que receberam para se eleger? E o fazem de forma tão correta que não querem nem ter seus nomes divulgados? Coitadinhos, como são injustiçados, não é?
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