O Brasil pode dar adeus à forma republicana de governo, ao sistema democrático e ao equilíbrio harmônico e independente entre os três poderes se, depois de Bolsonaro se recusar a comparecer à Polícia Federal para depor sobre o vazamento por ele de documentos relativos a uma investigação que apurava o ataque hacker ao TSE, não acontecer nada e ficar por isso mesmo. Afinal, um presidente, antes de presidente, é um cidadão como qualquer outro, com direitos e deveres. E entre os deveres, está o de cumprir as determinações judiciais que lhe forem impostas. Foi o que o ministro Alexandre de Moraes, com a competência que lhe é atribuída pela Constituição, fez ao determinar o depoimento – que ocorreria até tardiamente, pois Bolsonaro teve 60 dias para indicar dia e horário para depor e não se mexeu nem alegou qualquer motivo para desobedecer à intimação.
O mais razoável seria Bolsonaro comparecer e, se lhe aprouvesse, ficar calado e não responder aos questionamentos, pois a lei lhe assegura o direito ao silêncio. Mas, fiel ao seu estilo autoritário e mandão, mais uma vez peitou o Judiciário, rasgou a Constituição e desobedeceu ostensivamente a uma determinação judicial. Se ficar por isso e não acontecer nada, adeus república, adeus democracia, adeus independência entre os poderes. A tripartição dos poderes vem lá do iluminista Montesquieu, na França do século XVIII, inspirado no grego Aristóteles e no inglês John Locke, que intuíram o liberalismo e dele fizeram escola. Foi assim que surgiu a ideia de “freios e contrapesos”, dentro do princípio que norteou a formação das democracias modernas segundo o qual só o poder freia o poder. Senão, os alicerces do edifício democrático vão à ruína.
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Por isso, pode até parecer, mas a conclusão de que a república, a democracia e o sistema tripartite de governo irão à breca se prevalecer a impunidade à desobediência de Bolsonaro, não é exagerada. Afinal, desde a instituição do poder judiciário como um dos tripés da república, sabe-se e repete-se que decisão judicial não se discute, cumpre-se. E depois, se dela se discordar, pode-se recorrer. Mas, quando o presidente, através do titular da Advocacia Geral da União, ministro Bruno Bianco Leal, recusa-se a cumprir à determinação do ministro Moraes alegando que só o fará se o plenário da Corte Suprema assim o decidir, deixa transparecer que está querendo ensinar o STF a trabalhar, extrapolando suas atribuições. E quando Bolsonaro alega em ofício à Polícia Federal “direito à ausência”, prevalece-se novamente de um suposto privilégio inerente ao cargo que ocupa. Ora, se o sistema republicano surgiu precisamente para extinguir os privilégios de castas, próprio dos impérios e das ditaduras, é uma contradição utilizar-se o recurso do foro “privilegiado” em benefício próprio.
Tudo isso ocorre quando, numa comparação tosca, vivemos os “efeitos extremos do clima democrático”, com as omissões governamentais na condução da pandemia, que já ceifou a vida de mais de 600 mil brasileiros; a movimentação de agentes públicos contra a vacinação das crianças, o negacionismo à eficácia das vacinas, a inação da equipe econômica diante da inflação assustadora e os juros estratosféricos, além das ameaças do presidente ao próprio STF e os arroubos ditatoriais como o de 7 de setembro do ano passado. Os efeitos extremos do clima democrático estão expondo o país a secas inclementes, tornados, enchentes e outros desastres nada naturais que vêm convulsionando a democracia.
E olha que, para alguns juristas, como o pós-doutor em direito constitucional Lenio Streck, Bolsonaro seria passível, até de condução coercitiva, hipótese considerada ainda remota pois se trata do presidente da república. Ele se prevalece dessa excrescência chamada foro privilegiado (que traz a palavra “privilégio” no próprio nome), que impediu a delegada Denisse Ribeiro, da PF, de indiciá-lo, embora disponha de provas contundentes do crime de violação de sigilo funcional, que é a divulgação de documentos sigilosos aos quais Bolsonaro teve acesso em função do cargo que ocupa. A que ponto chegamos: um presidente da república precisa se abrigar debaixo do foro que acoberta alguns “privilegiados” para escapar da mão da justiça…
O pior é que tudo isso ocorre quando vivemos o que se poderia chamar de “efeitos extremos do clima democrático”, com as omissões governamentais na condução da pandemia, a movimentação de agentes públicos contra a vacinação das crianças, o negacionismo à eficácia das vacinas, a inação da equipe econômica diante da inflação assustadora e os juros estratosféricos, além das ameaças escancaradas do presidente ao sistema democrático com seus arrufos ditatoriais, como ocorreu no 7 de setembro do ano passado. Os efeitos extremos do clima democrático estão expondo o país a secas inclementes, tornados violentos, enchentes devastadoras e outros desastres que vêm convulsionando o meio ambiente da democracia. Para completar o quadro, só faltava o pouco caso do presidente ao cumprimento de seus deveres constitucionais, como cabe a qualquer cidadão. Faltava. Não falta mais.
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