Claudia Fernanda de Oliveira Pereira*
Há bastante tempo, desrespeita-se, no DF, o primado do concurso público[1], para a contratação de Agentes de Vigilância Ambiental (AVA) e Agentes Comunitários de Saúde (ACS), apesar da expressa previsão na Lei distrital 5237/13[2] e na Constituição Federal (CF).
Para piorar, além da não realização do certame público, a Secretaria de Saúde do DF (SES/DF) também se vale de Convênios com o Ministério da Saúde (MS), perpetuados em sucessivas prorrogações ou novos pactos, contrariando decisões judiciais conhecidas, que apontam para a indevida utilização desse modo, como forma de admitir mão de obra[3].
Em 2014, Ação de Obrigação de Não Fazer foi ajuizada por Sindicato em face do Distrito Federal, a fim de impedir a realização de mais um processo seletivo simplificado para a contratação desses Agentes. O TJDF, julgando procedente a ação, afastou a imprevisibilidade da situação no caso, pois a Administração Pública não promovera, há mais de 10 (dez) anos, concurso público para o cargo (2014.01.1.054269-3).
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A situação, contudo, não se resolveu.
Em 2020, foi lançado novo procedimento seletivo simplificado para a contratação de 600 (seiscentos) agentes, o que foi objeto de Representação (01/20) do Ministério Público de Contas do DF (MPCDF). Na ocasião, o TCDF decidiu, por maioria, considerá-la parcialmente procedente, para determinar à Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – SES/DF, em conjunto com a Secretaria de Economia do Distrito Federal, que ultimassem as providências para a realização do necessário concurso público para provimento dos cargos de Agente Comunitário de Saúde e Agente de Vigilância Ambiental em Saúde, da carreira Vigilância Ambiental Atenção Comunitária à Saúde do Quadro de Pessoal do Distrito Federal, de forma a regularizar, de vez, a situação desses agentes, cujo papel vem sendo desempenhado apenas de forma precária, mediante repetidos processos seletivos simplificados para contratação temporária de pessoal (Decisão 1805/20, PROCESSO Nº 2768/2020).
Facilmente, então, chegou-se ao ano de 2021, tendo sido adicionado, agora, um novo componente: a pandemia, provocada pelo novo Coronavírus.
Com efeito, nova contratação temporária está em curso, por tempo determinado de 12 (doze) meses, prorrogável por igual período, não mais de 600 agentes, mas agora de 1000 (mil), com possibilidade de outros 500 (quinhentos) integrarem cadastro reserva.
Segundo o gestor, o concurso público autorizado para os cargos efetivos supriria somente 65 (sessenta e cinco) vagas, apuradas até agosto de 2020, sendo 55 (cinquenta e cinco) de Agentes Comunitários de Saúde e 10 (dez) de Agentes de Vigilância Ambiental, sendo insuficiente.
Invocaram-se, ainda, as restrições impostas pela LC nº 173/2020, art. 8o[4], bem como diante da justificada necessidade, com vistas à não interrupção das diversas ações de atendimento à saúde pública a cargo desses profissionais na SES/DF.
O MPCDF, no Parecer 574/21, deixou claro que a COVID19 não é mote para que o ente federado pratique qualquer ato, sem a devida motivação.
Nesse diapasão, citou-se que os casos de dengue, por exemplo, diminuíram durante a pandemia, em todo o país, mais de 90% em várias localidades. E, no DF, não foi diferente, com taxas de queda de mais de 80%[5]. Por isso, injustificado o aumento do número de agentes a serem contratados, e, ainda por cima, sem concurso.
Na sequência, o Parquet defendeu que a vedação da LC 173/20, visou impedir o aumento do déficit público. Em outras palavras, o principal objetivo da referida norma foi tratar do auxílio financeiro para os entes da federação, daí a justa previsão para que esses não ocasionassem dívidas outras, comprometendo o equilíbrio fiscal. Ocorre que o DF fechou o ano de 2020 com superávit[6].
Ademais, é de clareza solar que a realização de concursos públicos não está proibida em face da LC 173/20, tanto que, recentemente, o eg. Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a realização de concurso para a Polícia Federal, ao argumento de que não se pode restringir a autonomia do ente federado para realizar concursos para o provimento de cargos próprios, especialmente quando se tratar de atividades essenciais (Rcl 47470).
Portanto, se é certo que o art. 8º da multicitada LC 173/20 é constitucional[7], consoante decidiu o mesmo STF, é necessário harmonizá-lo no contexto maior, que deve ser o interesse público. Tanto assim o é, repita-se, que o STF defendeu que o citado dispositivo legal tem a finalidade de apresentar medidas de prudência fiscal para o enfrentamento dos efeitos econômicos negativos causados pela pandemia aos cofres públicos. Por isso, a norma se dirige aos entes afetados pela calamidade pública, decorrente da pandemia da COVID-19. Isso porque, a finalidade da legislação é justamente afastar o populismo, ou seja, que a entidade federada faça cortesia “com o chapéu alheio”[8], causando transtorno ao equilíbrio econômico financeiro nacional.
Ora, se o DF é superavitário, de modo algum, pode recusar o certame público e contratar temporariamente.
Com efeito, o que parece estar ocorrendo é uma clara preferência pela realização precária no modo de selecionar servidores em detrimento do concurso público, ofendendo-se a Constituição Federal e com ausência de motivação, com base no interesse coletivo[9].
[1] Citem-se, por exemplo, as decisões do TJDF contra leis distritais que investiram contra o concurso público (ADI 0-66862 e 2008 00 2 018840-1).
[2] Referida norma também previu a transposição do regime celetista para o estatutário. O MPCDF ofereceu a Representação nº 17/2015-CF, alegando a incompatibilidade desse dispositivo com a Constituição Federal. O TCDF, por meio da DECISÃO Nº 1082/2017, considerou-a improcedente (Processo 9900/15). O MPDFT, por sua vez, ajuizou a ADI 0000550-62.2019.8.07.0000, mas o TJDF acolheu a preliminar de inadequação da via eleita e extinguiu o processo sem resolução do mérito. Isso porque só seria admissível ação direta de inconstitucionalidade contra ato dotado de abstração, generalidade e impessoalidade, e a lei em tela dirigiu-se aos agentes de vigilância ambiental em saúde e aos agentes comunitários de saúde, “destinatários absolutamente individualizados, além de já haver exaurido seus efeitos na medida em que aqueles que optaram pela carreira criada pela aludida lei já o fizeram”.
[3] A Representação nº 36/2019-GPCF, do Ministério Público junto à Corte, questionou a manutenção de convênio entre a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – SES/DF e a Fundação Nacional de Saúde – FUNASA. O TCDF proferiu a Decisão 2363/21, determinando à SES/DF, sob pena de responsabilização do(s) gestor(es), que se abstivesse de firmar um novo e/ou de renovar convênio de natureza similar, em detrimento de regular processo seletivo público (art. 198, § 4º, e art. 37, IX, ambos da CF/88) e/ou de concurso público propriamente dito (art. 37, I e II, da CF/88); e ultimasse as providências suficientes e necessárias ao regular e legal deslinde do concurso público para Agente Comunitário de Saúde e Agente de Vigilância Ambiental em Saúde, para substituição gradual dos servidores relacionados no Termo de Ajustamento de Conduta – TAC nº 01/2019, firmado entre o Ministério Público Federal – MPF e a SES/DF (Processo 25060/19).
[4] Lei que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), cujo artigo 8º proíbe até 31/12/21 a realização de concurso público, exceto para as reposições de vacância, admitida a seleção temporária, incisos IV e V.
[5] https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2021/05/21/casos-de-dengue-caem815-no-distrito-federal/.
[6] https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2020/12/4896730-gdf-encerra-2020-com-superavit-de-rs-2175-milhoes.html.
[7] ADIs 6442. 6447, 6450 e 6525, bem como RE 1311742.
[8] Por exemplo: MANDADO DE SEGURANÇA (…) NOMEAÇÃO – Direito subjetivo para os aprovados dentro do número de vagas colocados no edital do concurso, o qual pode ser excepcionado em situação superveniente devidamente justificada pela Administração, conforme decisão no RE-598.099, em repercussão geral no Supremo Tribunal Federal – Situação, no caso em testilha, de inequívoco déficit orçamentário no Tribunal de Justiça de São Paulo para o exercício de 2020, agravado pela perda de arrecadação do ICMS em razão da queda da atividade econômica no Estado de São Paulo pelas restrições da pandemia do COVID19 – Justificativa para a não nomeação da impetrante (MS 2046862-97.2020.8.26.0000). Repita-se: esse não é o caso do DF.
[9] A doutrina também alerta: “Essas contratações precárias devem ser realizadas excepcionalmente quando não há possibilidades de realizar um concurso público. (…) O que temos visto é o escancaramento da desorganização da Administração (…) verificada a preterição arbitrária, mesmo em tempos de pandemia, porque nem ela pode dar carta branca para a Administração Pública fazer da lei o que bem entender” (https://www.conjur.com.br/2021-jan-23/ortegaconcursos-publicos-suspensao-nomeacoes).
*Claudia Fernanda de Oliveira Pereira é procuradora do MP de Contas do DF, mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília e associada do Movimento do Ministério Público Democrático
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