Na base das sucessivas crises que o país vem atravessando desde que Collor foi impichado há 26 anos estão dois fatores que a classe política brasileira não quer enfrentar de forma alguma: a primeira é a forma de se fazer política no Brasil. Desde sempre, o método tem sido o do clientelismo, do toma-lá-dá-cá. Junto com ele, a intocabilidade das “otoridades”, com seus contracheques irrigados por verbas extraordinárias e absurdas, como a ajuda-telefone, ajuda-passagem aérea, ajuda-correio, e mais carros oficiais, viagens internacionais de recreio escondidas sob o nome pomposo de “missão oficial” e otras cositas más. Sem falar no tratamento reverencial dado a quem ocupa qualquer cargo público no Brasil. Basta assumir que o eleito ganha uma aura sagrada e protetora, herança insidiosa de nossa formação imperial que a república não extinguiu.
“Vossa Excelência é um cretino!”
Nos parlamentos – da Câmara de Vereadores de Saramandaia ao Congresso Nacional – ainda resiste o tratamento que vem lá das cortes portuguesas, aquela que obriga os “nobres” parlamentares a se tratar de Excelência: “- Vossa Excelência é um cretino!” “- E Vossa Excelência, além de cretino, é ladrão e corrupto!” Esse “jeito” de encarar a atividade política é detestável, mas são pouquíssimos os parlamentares que se dispõem a atualizá-lo, modernizá-lo, moralizá-lo.
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O outro fator que contribui para que as crises se sobreponham e emperrem o funcionamento da máquina pública, interfiram no desempenho da economia e tumultuem a ordem social é a inexistência de mecanismos ágeis de substituição dos comandantes do poder. E ninguém move uma palha para alterar isso. Nos regimes parlamentaristas, a troca do primeiro-ministro e a queda do gabinete é feita de forma rápida, segura e com um mínimo de traumas. Independentemente das motivações boas ou más que levaram ao impeachment de Dilma, ninguém se esquece do trauma em que o país mergulhou até a votação que mandou Sua Excelência pra casa. Teve de ser erguido um muro na frente do Congresso para que os manifestantes não se matassem. A falta de dispositivos regulares e ágeis não permitiu, até hoje, a existência de um rito processual a ser cumprido no caso de processos de afastamento do Presidente da República. Nem de governadores. Tanto que, no caso Dilma, para dar um mínimo de suporte institucional, foi-se buscar o conselho do ex-ministro Sydney Sanches, do Supremo, a quem coube encaminhar como presidente do STF a denúncia contra Collor, 24 anos antes. E lá se foi o Supremo detalhar um novo rito processual, adaptado aos novos tempos, para dizer como se realizaria o bota-fora da “Presidenta”.
Eu elegi, eu deselejo
O instituto do referendo revogatório de mandatos, também conhecido como “recall” político, bem que poderia dar início à reforma dos métodos de funcionamento da democracia brasileira, e servir de barreira a tentativas de golpe e quarteladas como a de 64. Se existisse em 2016 e tivesse sido aplicado no caso Dilma, não haveria espaço para se falar com tanta naturalidade em golpe, como se fala hoje. O instituto do “recall” foi criado em 1911 nos Estados Unidos, que o copiaram da Suíça. Em linhas gerais, funciona exclusivamente para cargos majoritários. Assim: se a população está insatisfeita com um governador, por exemplo, recolhe um determinado número de assinaturas, encaminha à autoridade eleitoral que convoca uma eleição – ou “deseleição” – para saber se fulano permanece ou cai fora. Por isso se chama referendo revogatório, porque tem o poder de revogar um mandato. É como se o eleitor dissesse ao detentor do mandato: – você foi eleito por mim, portanto seu mandato é meu, e tal como lhe dei posso retirá-lo quando achar que você não merece mais o meu apoio.
Imagina quanta dor de cabeça teria sido evitada! Agora mesmo há dois estados com governadores presos – Rio de Janeiro e Amazonas. Se o instituto do “recall” estivesse em vigor, uma eleição revogatória podia mandar os dois se entenderem com a justiça comum e já teriam sido eleitos os substitutos, sem traumas nem bate-bocas. Situação idêntica à de Temer, afogado em denúncias, com taxa de aprovação abaixo do pré-sal. Se houvesse o instituto do “recall”, será que o marido da Marcela ainda estaria despachando no Palácio do Planalto?
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