André Lima* e Luciane Moessa**
No dia 15 de setembro, o Banco Central publicou uma série de atos normativos que aprofundam a integração de aspectos socioambientais na gestão de riscos dos bancos e demais instituições financeiras por ele reguladas, e trazem a agenda da geração de impactos socioambientais positivos pela primeira vez para a regulação – riscos e oportunidades climáticas receberam maior atenção, mas as inovações vão muito além. Novos tópicos socioambientais também foram incorporados à regulação do crédito rural – mesmo que de forma insuficiente (pois são desconsideradas áreas em processo de demarcação, titulação ou regularização), a nova norma já expande o radar das instituições financeiras em termos de assuntos que devem ser levados em conta na concessão de crédito. E outras normas adicionais virão em 2022.
É importante registrar que, desde 2014, o BCB já havia, a partir da Resolução CMN 4.327, introduzido a exigência de que as instituições financeiras (IFs) que ele supervisiona possuíssem Políticas de Responsabilidade Socioambiental. Porém, a norma anterior trazia basicamente questões de governança, não definindo os temas propriamente ditos que deveriam ser considerados pela IFs nessa temática. Agora, as Resoluções CMN 4.943 e 4.944/2021 trazem definição clara e abrangente (embora não exaustiva) de situações de risco ambiental, social e ainda do climático. Para riscos climáticos, padrões internacionais (tais como as recomendações da TCFD – Task Force on Climate-related Financial Disclosures) são adotados, com definição de riscos físicos (incluindo eventos climáticos extremos e alterações permanentes em padrões climáticos, bem como as consequências dessas alterações, tais como a elevação do nível do mar) e riscos de transição (regulações ambientais ou de energia mais restritivas, mudanças nas preferências de mercado ou nas demandas de investidores, inovações tecnológicas, riscos reputacionais).
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Para riscos ambientais, um destaque importante é que até mesmo o “uso excessivo de recursos naturais” foi incluído; além disso, o descumprimento de condicionantes da licença ambiental, violações ambientais em geral (incluído desmatamento ilegal, uso irregular de recursos hídricos, poluição do ar, água ou solo, degradação da biodiversidade, tráfico ou abusos contra animais); e até mesmo atividades lícitas que podem contudo impactar negativamente a reputação da IF por causarem danos ambientais; além disso, riscos ambientais de transição também foram incluídos (alterações na regulação ambiental que possam impactar a IF negativamente). Para riscos sociais, os temas incluem trabalho similar ao escravo, trabalho infantil ilegal, discriminações ilegais, qualquer forma de assédio, tráfico de pessoas e violações à legislação trabalhista em geral (incluindo saúde e segurança do trabalho), danos a comunidades indígenas, quilombolas ou outras comunidades tradicionais; danos ao patrimônio histórico, cultural ou urbanístico, violações à legislação de proteção de dados, danos causados a comunidades em razão de desastres (tais como rompimento de barragens de rejeitos de mineração); riscos sociais de transição decorrentes de alterações na legislação também foram mencionados.
Como já estava previsto na Resolução CMN 4.327/2014, o sistema de gerenciamento de riscos deve incluir a identificação, avaliação, mitigação, classificação, monitoramento e controle dos riscos; mas agora a regulação traz os critérios a serem usados para classificação de riscos: 1) setor/atividade econômica; 2) localização geográfica; 3) histórico com relação ao cumprimento da legislação socioambiental; 4) governança e eficiência socioambiental). Essa previsão de critérios, ao trazer robustez à classificação de riscos, permitirá que bancos possam comparar, por exemplo, o nível de inadimplência em operações de crédito com diferentes níveis de risco ambiental, social ou climático, ou medir a rentabilidade dos investimentos também conforme a categoria de risco ambiental, social ou climático.
A nova norma também corporifica uma visão macro de gerenciamento de riscos (que já vinha desde as Resoluções CMN 4.557 e 4.661/2017), exigindo que esse seja realizado em nível de portfólio (tanto de crédito quanto de investimentos), avaliando a concentração de riscos por região geográfica e por setores econômicos, definindo-se limites de exposição a riscos. Até há poucos anos, a grande maioria das IFs avaliavam riscos em nível de transações e de clientes – e cada uma com seus próprios critérios para definir quais transações e clientes deveriam ser avaliados quanto a riscos socioambientais. Mas não existia essa visão de avaliar os riscos de toda a carteira. Na mesma linha, exige-se que sejam realizadas análise de cenários e testes de stress em nível de portfólio, considerando a transição para uma economia de baixo carbono.
Essas são apenas algumas das alterações, cujo conjunto é impressionante e está alinhado às melhores práticas de reguladores em nível internacional – além disso, vale registrar que o BCB é o primeiro regulador bancário de uma economia emergente que incorporou o tema dos riscos climáticos com tamanha abrangência. Elas começam a vigorar em julho de 2022 para as IFs de maior porte e seis meses depois para as demais.
A Resolução CMN 4.945/2021, por seu turno, tem como inovação mais significativa as definições de contribuição (ou impacto positivo) que as atividades de IFs podem produzir no âmbito ambiental, social e climático:
- para impacto ambiental positivo, a definição abrange tanto a conservação quanto a restauração ambiental;
- para impacto social positivo, a definição inclui a promoção, respeito e proteção de direitos humanos/fundamentais em geral;
- para impacto climático positivo, estão incluídas tanto a mitigação de quanto a adaptação a mudanças climáticas, sendo que a preservação das fontes naturais de captura de carbono está incluída explicitamente na mitigação (ao lado da redução e compensação de emissões de gases com efeito estufa, naturalmente); para adaptação, foram incluídos tanto as medidas para lidar com o aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos quanto as mudanças de longo prazo nos padrões climáticos.
Aumenta também a transparência, pois agora as IFs passam a ter que publicar não apenas sua Política de Responsabilidade Socioambiental (agora Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática), exigência que já existia na Resolução 4327, mas também as ações relativas à implementação dessa política; a lista de setores econômicos para os quais a IF adota restrições devido a fatores ambientais, sociais ou climáticos; a lista de produtos financeiros com impactos ambientais, sociais ou climáticos positivos que ela oferece; a lista das iniciativas de autorregulação a que a IF aderiu nessa matéria; os mecanismos que ela adota para dialogar com partes interessadas; como item de divulgação opcional, encontra-se a avaliação da implementação da Política.
Ainda nessa linha de maior transparência, a Resolução BCB n° 139/2021 e a Instrução Normativa BCB n° 153/2021 trazem conteúdos que devem ser divulgados no chamado Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas, a ser divulgado anualmente, a partir de 2023 (tendo por base o ano de 2022). As IFs com maior patrimônio são obrigadas a divulgar mais informações do que as demais (todas as descritas a seguir), sendo que as informações abrangem governança (único tema obrigatório para todas as IFs), estratégias de gestão, processos de gerenciamentos e indicadores usados na gestão de riscos ambientais, sociais e climáticos. Além disso, as IFs de maior porte também devem divulgar como exploram oportunidades de negócios relativas a questões ambientais, sociais e climáticas.
Agora, o que buscamos apontar aqui é a enorme e grave inconsistência entre as novas normas do sistema bancário e o Projeto de Lei de Licenciamento Ambiental (PL 3.729/2004) aprovado pela Câmara em maio desse ano e atualmente em revisão pelo Senado (PL 2.159/21). Em primeiro lugar, porque o PL dispensa licenciamento em situações de altíssimo risco ambiental, como obras de saneamento (art. 10 do PL), bem como dispensa a realização de Estudo de Impacto Ambiental em situações também de alto risco, como são os “serviços e obras direcionados à ampliação de capacidade e pavimentação em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e servidão” (art. 11), ao enquadrá-las na chamada “Licença por Adesão e Compromisso” sem estabelecer qualquer limite quantitativo ou qualitativo para tal ampliação. Cria um cheque em branco para estados e municipios (quase seis mil entes federativos) definirem critérios, sem um critério geral. O que era para ser uma Lei Geral de Licenciamento, se transformou numa Lei “genérica” sem critérios mínimos aplicáveis em todo território nacional.
Além disso, enquanto vemos nas novas normas do sistema financeiro a inclusão de temas relativos a comunidades indígenas, quilombolas e patrimônio cultural entre temas de risco social para os quais as instituições financeiras devem estar atentas, e a previsão de riscos par unidades de conservação entre os riscos ambientais que elas devem avaliar, o art. 38 do PL prevê que os órgãos encarregados da proteção de unidades de conservação, patrimônio cultural, terras indígenas e territórios quilombolas somente serão ouvidos no licenciamento, sem qualquer caráter vinculante. Ainda, o artigo 39, I, prevê que, no caso das terras indígenas, apenas serão consideradas aquelas com demarcação homologada (o que exclui centenas de terras indígenas em processo de demarcação no território brasileiro, o que pode ser confirmado mediante simples consulta ao site da FUNAI, que mostra a localização de todas elas e o estágio da demarcação) e, no caso dasáreas de comunidades quilombolas, somente aquelas já tituladas, desconsiderando que apenas pouco mais de 30 áreas já foram tituladas pelo INCRA em todo o território nacional, havendo mais de 1500 processos em trâmite (por sinal, totalmente paralisados no atual governo federal, violando a obrigação estipulada pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de realizar a titulação). Mais grave ainda é estabelecer prazo de 90 dias para manifestação desses órgãos e admitir a aprovação tácita quando sabemos que o Poder Executivo Federal não garante pessoal e orçamento adequados ao exercício de suas competências.
É extremamente preocupante ainda a previsão do artigo 13 do PL de que os impactos ambientais indiretos e cumulativos das atividades a serem licenciadas não poderão ser considerados na definição das condicionantes da licença ambiental. É como se aquele que vai colocar a última gota no copo (a natureza) que vai derramar, excedendo à sua capacidade de absorção de impactos negativos, não pudesse ser “responsabilizado” por todas as “gotas anteriores”… Ora, para isso exatamente existe o licenciamento ambiental, para identificar se o local do empreendimento ainda suporta (e em que medida) novos impactos ambientais negativos, sem ameaças à saúde humana ou danos demasiado graves e irreversíveis ao meio ambiente.
Caso a resposta seja negativa, cabe ao empreendedor desenvolver sua atividade em outro local – se os impactos cumulativos e sinérgicos não forem considerados, o licenciamento perde quase totalmente a sua finalidade, a menos que a atividade licenciada seja a primeira e a única a ter impactos ambientais negativos no local. Ora, não raras vezes, em se tratando de empreendimentos em áreas sensíveis, vulneráveis ou prioritárias para conservação da biodiversidade, os impactos indiretos correspondem aos impactos mais graves e irreversíveis. Citamos um exemplo clássico de impacto indireto que deixará de ser considerado se o PL for aprovado como está: o mero asfaltamento de dezenas de estradas vicinais ao longo de toda Amazônia, e que cruzam florestas públicas não destinadas pode gerar um fluxo de ocupações irregulares seguido de desmatamento, roubo de madeira, garimpo clandestino, grilagem de terras, incêndios florestais. E por óbvio, esses impactos considerados “indiretos” são graves, permanentes e de consequências muitas vezes irreversíveis. O PL de licenciamento nesse aspecto é uma bomba relógio de desmatamento. Vale lembrar que o governo “omitiu” durante a COP 26 o dado já conhecido do INPE de que desmatamento na Amazônia alcançou no ano de 2021 o recorde de mais de 10 anos, com taxa 21% superior ao ano anterior, extrapolando o índice de 13 mil km2. Ainda, é relevante notar que, diferente das novas normas do setor financeiro, a necessidade de consideração dos riscos climáticos das atividades sujeitas a licenciamento simplesmente não é mencionada em nenhum momento pelo PL. O exemplo citado relativo à bomba de desmatamentos ilegais em florestas públicas reforça essa preocupação de que o PL da Câmara ignora o futuro e ignora o compromisso brasileiro de se tornar neutro em emissões de gases com efeito estufa até 2050, mediante apresentação de metas de curto e médio prazos mais ambiciosas e permanentemente progressivas.
Importante, por fim, destacar que a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) regulada pelo art. 21 será aplicável aos casos em que não se exija Estudo de Impacto Ambiental (empreendimentos de significativo impacto ambiental). Isso significa afirmar que mais de 80% dos empreendimentos hoje licenciáveis deixarão de exigir vistoria ou qualquer ato administrativo prévio à emissão de licença de empreendimentos de médio impacto e risco. E os agentes financeiros certamente não vão substituir a verificação pelo órgão ambiental, já que não é esse seu papel nem possuem expertise para tanto.
O resultado desse quadro, caso o PL seja aprovado, será um licenciamento ambiental brutalmente enfraquecido, uma regulação ambiental em que os temas referidos são menos valorizados no licenciamento ambiental (um dos principais instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente) do que já o são na regulação financeira!
E é evidente que o setor financeiro precisa de uma regulação socioambiental robusta para que possa utilizar as informações produzidas por órgãos socioambientais na sua gestão de riscos.
Riscos socioambientais mais altos aumentam o risco de crédito (inadimplência), o risco de mercado (desvalorização de ações de empresas com maior risco socioambiental que estejam nas carteiras de investimentos) e também o risco de liquidez. Todos esses fatores, naturalmente, podem impactar diretamente – e de forma negativa – na estabilidade/solidez e mesmo nos resultados financeiros das instituições financeiras. Por conta disso, e sobretudo num cenário de nova elevação da taxa básica de juros (SELIC), a tendência é que os bancos simplesmente decidam conceder menos crédito, para evitar riscos ambientais e climáticos demasiado elevados. A economia real perde com isso, evidentemente – e esse acaba sendo mais um fator de desaquecimento da economia, com impactos diretos na taxa de desemprego.
Trata-se de um cenário em que todos perdem – sistema financeiro, meio ambiente, sociedade e economia como um todo. O Senado Federal precisa trabalhar seriamente para evitar esse desfecho.
*André Lima, advogado, foi Secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, Consultor Sênior de Política e Direito Socioambiental do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). É Colunista do Portal Congresso em Foco
*Luciane Moessa, advogada, Mestre (UFPR) e Doutora (UFSC) em Direito Público, com pesquisa de Pós-Doutorado (USP) em Sistema Financeiro e Desenvolvimento Sustentável (que resultou em livro com esse título) e fundadora da Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS)
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