Nos idos de 2010 escrevi as linhas abaixo:
“Há poucos dias todo o planeta acompanhou, comovido, o resgate dos 33 mineiros chilenos que quase perderam a vida tentando ganhá-la extraindo minérios centenas de metros sob o solo.
Enquanto a humanidade ainda celebrava, com pompa e circunstância, a milagrosa operação que tirou das garras da morte 33 semelhantes nossos, li em um jornal chileno que Roberto Benitez faleceu. Trata-se de outro mineiro – um jovem de apenas 26 anos. Ele acabou esmagado por uma rocha em outra mina chilena, mais de mil metros abaixo da superfície.
Praticamente na mesma data quatro outros mineiros foram vítimas de um acidente no Equador – acabaram presos debaixo da terra, a 150 metros da superfície, enquanto trabalhavam.
Na Colômbia, também naqueles dias, chorava-se a morte de quatro mineiros que trabalhavam em uma galeria 60 metros debaixo da terra. Os corpos de dois deles sequer resgatados foram – ficaram por lá mesmo. O nome do lugar que lhes serviu de túmulo é “La Esperanza”.
Poucas horas depois, do outro lado do mundo, uma explosão em uma mina de carvão lá da China vitimou outros 276 mineiros. 239 deles conseguiram escapar e chegar à superfície, mas 37 outros não tiveram a mesma sorte. Naquele mesmo país, há alguns meses, 115 mineiros ficaram presos no fundo de uma mina, somente tendo sido resgatados uma semana depois. Alguns deles chegaram a comer carvão, na busca desesperada pela sobrevivência.
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Diante de tantos e tão frequentes acidentes, decidi pesquisar um pouco mais o assunto. Constatei, chocado, que para cada um dos 33 mineiros chilenos resgatados, cerca de 400 outros morrerão ainda neste ano. Estima-se que a cada ano morram 12.000 mineiros pelas galerias escuras e insalubres das minas de uma humanidade que se orgulha tanto de sua tecnologia a ponto de querer ir a Marte – deve ser para abrir algum outro buraco por lá.
Ainda acabrunhado diante deste rosário de desgraças, li que há algum tempo redigiu-se um pacto internacional para melhorar a segurança nas minas deste planeta – e eis que até ontem, salvo engano, apenas 24 países o assinaram. Aliás, a este respeito, registro que o Chile não era um deles.
Enquanto isso, Carlos Bugueno, um dos 33 mineiros chilenos resgatados, voltou para casa – um barraco de madeira que divide com outros 16 parentes. Ele foi recebido com festa por todos – como faltou dinheiro para comprar balões de ar, encheram sacos plásticos de lixo com ar. Carlos Mamani, seu colega, também voltou para casa – um outro barraco de madeira, que sequer água corrente tem. Logo, logo, eles dois estarão de volta a estes buracos assassinos que a humanidade batizou de “minas” – afinal, há que se ganhar a vida, ainda que sob o risco de perdê-la.
É assim que minérios os mais preciosos, arrancados das entranhas do planeta ao custo do sangue de tantos semelhantes nossos, vão sendo vendidos no mais das vezes a preço de banana para sustentar o que orgulhosamente chamamos de “economia de mercado”. A quem duvidar de minhas palavras, sugiro comparar o preço de uma tonelada de minério com o de uma única barra de chocolate suíço, ou o de um barril de petróleo com o de um simples litro de uísque escocês. Um escândalo, esta tal de “economia de mercado”.
Talvez, nestes portais do século XXI, nossa tão avançada civilização, milagre de um planeta que pretendemos único, devesse meditar sobre as palavras do Marquês de Maricá: ‘a escravidão avilta o escravo e barbariza o senhor’.”
Pois é. Uns quatro anos se passaram. Lembrei-me dessas linhas ao ler, semana passada, que 282 semelhantes nossos morreram em uma mina na Turquia. Olho para minha mesa, e vejo um telefone celular. Quantas vidas terá ele custado? Vejo, pela janela, um avião passando. Quantos foram para baixo da terra para que ele pudesse alçar voo acima dela?
Fiquei a pensar, então, em uma pintura de Georges Rochegrosse magistralmente descrita pelo escritor português Albino Forjaz de Sampaio: “É um quadro que representa a vida. No primeiro plano, muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão corretos como se fossem para um baile. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome. Aquele monte é a ambição de subir na vida. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam. Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga duma derrota”.
E prossegue o escritor lusitano: “Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha, é que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares, serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar”.
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