Neste ano de 2020, que termina com tantas ausências, recebo a incumbência de falar do Natal. Falar do nascimento de Deus. Penso que é paradoxal ao que sinto como desejo e inspiração, mas tudo bem. É certo que sempre falo de pessoas e de fatos, narro histórias que transcendem o andamento normativo que se constrói com a medida do Cronos.
São relatos tecidos pela complexidade dos acontecimentos que me formaram como mulher negra, religiosa, profissional e de um jeito de viver e educar que reconheço como quase utópico. Uma utopia realizável, convenhamos. E se o faço deste modo, é por sentir a necessidade de me considerar uma aprendente a partir do imbricamento com as convivências familiares, comunais, incluindo as memórias onde aprendi a ser o que sou. Apreendo que o meu desempenho no mundo se articula pela implicação e o distanciamento, a afetividade e a racionalidade, o simbólico e o imaginário, a mediação e o desafio, a autoformação, a inclusão, a exclusão, a heteroformação, a ciência e a arte. Das memórias do Natal, ouço a voz de dona Idalina: O Natal está na porta!
Era bem assim, quando chegava dezembro, de vez em quando Dona Idalina apressava os reparos: a revisão do forno de lenha no fundo da cozinha, a limpeza do quintal, a pintura e a organização da casa. Cada ordem era acompanhada da afirmação de sempre: O Natal esta na porta!
O Natal, em todo caso, pode ser compreendido como “eternidade do agora”. A eternidade que se projeta na transtemporalidade do momento presente em todo seu mistério estampado com nossas vivências e expectativas. Santo Agostinho afirma que não existem três tempos, presente, passado e futuro, mas somente três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, entretecendo uma mesma história com outras histórias, numa dança renascente em um tempo Kairós. A dança dos tempos e dos templos.
Na casa da Rua Dr. José Joaquim Seabra, 13, em São Felipe, havia um lugar muito especial: a sala de visitas. No dia 12 de dezembro, dia do aniversário de Antônio Santeiro, a sala, e toda a casa, era transformada no berço do Menino Deus. O conjunto de poltronas vermelhas era mudado de lugar para acolher as pessoas. A manjedoura teria que ser mostrada na sua real grandeza.
No meio da sala, o piano sempre coberto de partituras, que se espalhavam desordenadamente, estava arrumado em um canto onde, mais tarde, um grupo de amigos com sax e flautas e outros instrumentos musicais, encheria o lugar sagrado dos mais belos chorinhos. Nunca faltou Pixinguinha!
A vitrola seria ligada mais tarde para alegrar o passeio das visitas. A coleção de discos clássicos estava a disposição bem embaixo da banquinha coberta com uma toalha bordada para dia de festa. Nas paredes, permanecia o retrato emoldurado de meu pai e minha mãe juntos. No outro lado, o Coração de Jesus, que sangrava copiosamente, era mostrado sem pudor. Eu sentia pena e revolta.
Para o presépio, papéis e jornais velhos eram cobertos com uma mistura de tintas vermelha com amarelo, preto e um pouco de branco. Tudo misturado resultou numa tonalidade de terra e pedras para construção da gruta que acolheria o Menino e que agora ocuparia o lugar de honra da casa. O papel colorido cobria uma estrutura com caixas, tijolos e tudo que possibilitasse o suporte para o Divino. Sobre as pedras encantadas, eram colados pedaços de limo retirados dos troncos das árvores do quintal.
Dia 12, dia de armar o presépio. Chega o momento do ritual! As velhas caixas eram abertas solenemente e retirados Nossa Senhora, São José, o Menino Deus, os Reis Magos. O anjo vestido de um azul bonito e brilhante trazia uma faixa acima da cabeça com a inscrição: Gloria in Exelsis Deo; os pastores, carneirinhos e os bois, que aqueceram com seu bafejo o Menino na noite fria do seu nascimento. O presépio estava pronto. Até as latinhas plantadas com milho já estavam no lugar, até o Natal estaria todo nascido. Todo verdinho. As folhas de pitanga e o jasmim só na véspera. Dava gosto acordar cedinho e ir buscar na Fonte do Povo. De longe, era possível sentir o perfume das flores branquinhas regadas pela luz da lua.
No final da tarde, Antônio Santeiro, meu pai, me chamava para perto do piano e tocava, cantava e repetia algumas vezes o Adeste Fideles, o mais lindo canto do Natal:
Adeste fideles laeti triumphantes
Venite, venite in Bethlehem
Natum videte regem angelorum
Venite, adoremus,
Venite, adoremus,
Venite, adoremus, dominum!
Eu estava pronta para cantar na Missa do Galo!
Antônio Machado, ou Antônio Santeiro, fez teatro com jovens da Liberdade com Padre Sadock e levou toda a experiência para os jovens de São Felipe, incluindo músicos pretos para o coral. Reunir pessoas estava além das subjetividades e da mitopoética do Natal. O ano inteiro ele ensaiava o coral para a festa de São Felipe, entremeado de outros agrupamentos festivos onde se exercitava a arte.
Noite de Natal chega em casa e nas ruas da cidade… Tudo que foi pensado vai acontecer: o desfile pelas principais ruas da cidade, o tema do baile pastoril estava perfeito. Foram ensaiados os cantos do Natal e o bailado nas ruas. O teatro no tablado, na porta da igreja, só esperava a hora.
Figurinos e lanternas arrumados e a orquestra também. Os músicos chegando para acompanhar o cordão. Até hoje ouço a pergunta: Onde Antônio Santeiro aprendeu tanta coisa?
Creio que a vida foi sua melhor escola. Antônio Santeiro só viveu 35 anos. Um câncer no estômago o levou para a ancestralidade. Minha mãe tinha 27 anos e 5 filhas. A menor tinha 9 meses. Eu tinha 11 anos quando minha mãe declarou: Aqui não tem mais presépio! Vendeu o piano e a coleção de discos. E eu herdei uma vigorosa história de confiança, alegria e cuidado com a vida. Minha mãe fez a sua viagem ancestral cinco anos depois, quando me tornei mãe de minhas quatro irmãs e de mim mesma. O próximo Natal aconteceu quando eu me casei e reuni minhas irmãs, no mesmo ano em que nasceu a Escola Joana D’arc, na Rua do Vale n.16, no Subúrbio de Paripe, com a metodologia hoje consolidada como tese de doutorado editada no livro Pele da Cor da Noite.
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