Conhecer a História é garantir a evolução da humanidade, especialmente porque inimiga do esquecimento. É a História quem fortalece a unidade, orgulha o espírito, estimula o desenvolvimento, motiva o exemplo e enaltece o acerto. É ela, ainda, quem aponta os erros, revela as traições, denuncia os crimes, exige reparações e desvenda os mistérios ocultados nos porões da vida. É ela, também, quem desmascara as versões oficiosas, estimula reações, exige comparações, prega rebeliões e ensina que o evoluir é atributo magistral da humanidade. É ela, por fim, quem constrói o alicerce da civilização, preparando-a no presente para a conquista de um futuro digno, igual e fraterno.
Nesta mesma linha argumentativa, apagar a memória de um povo é o mesmo que lhe negar a sua própria História. Desmemoriados, acreditamos que vivemos no “paraíso racial”, ainda que escravidão passada continue a produzir desigualdade, preconceito e exclusão social. Deslembrados, aceitamos o “ensinamento” de que somos acomodados e cordatos com os poderosos, pouco importando os mascates, os inconfidentes, os conjurados, os cabanos, os sabinos, os balaios, os alfaiates, os praianos, os quilombolas, os farroupilhas, os sertanejos de Antônio Conselheiro, os tenentistas e milhares de outros brasileiros que, independentemente dos motivos, transformaram em ação o sonho da resistência. Esquecidos, acolhemos a verdade que nos contam, ainda quando desconfiamos da sua procedência.
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Os efeitos perversos da ausência de memória no Brasil não param nos exemplos citados. Aqui se insiste em esconder um período nebuloso da História que perdurou por longos e tenebrosos anos, sustentado pela força bruta que governava e paralisava toda uma nação. Aqui se nega que um dia foram adormecidos os sonhos de uma geração que ansiava reformar a velha, patrimonialista e conservadora sociedade brasileira. Aqui se procura apagar o tempo em que o autoritarismo era fartamente servido na mesa do brasileiro, ainda quando a falta de comida também lhe servisse de complemento alimentar. Aqui querem rasgar as páginas escritas pela caneta do medo.
O medo de exprimir o mais simples dos pensamentos. O medo de ser denunciado por apenas ler um livro ou gostar de determinada música. O medo até de dizer que se tinha medo. E quem superava o medo era trancafiado em um desses calabouços oficiais que escondiam um envergonhado submundo de torturas, prisões clandestinas e “desaparecidos” ocultados pela própria máquina estatal.
Era o tempo do compulsório “amar” ou deixar o país. Era o tempo em que o presidente constitucionalmente eleito fora derrubado por um Golpe de Estado, o Congresso Nacional fechado pela força dos tanques, parlamentares cassados, eleições diretas fulminadas, e governadores e senadores biônicos a representar os interesses de uma ditadura militar. Era o tempo em que o Poder Judiciário estava castrado na sua missão de livre decidir, violado na sua independência, desrespeitado em suas prerrogativas, humilhado com a cassação dos ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Era o tempo da censura, das perseguições políticas e da revogação do habeas corpus.
O avançar do tempo nos fez um país economicamente grande, socialmente mais forte. A cara nova do cenário internacional. Mas, infelizmente, o tema dos direitos humanos ainda assusta e gera inexplicáveis polêmicas. Eis porque, nesta área, ainda é preciso constitucionalizar o Brasil. E essa é uma tarefa ainda inconclusa. O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisa entender que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. Não é uma frase de efeito, mas uma realidade objetiva, que nos obriga a lutar para que o país saiba, em detalhes, o que lhe aconteceu durante a ditadura militar.
Não podemos continuar a ser a única nação sul-americana vitimada por ditadura militar na segunda metade do século passado a não conhecer os detalhes de sua própria História. A Argentina chegou a encarcerar ex-presidentes da república, sem que isso abalasse a democracia. O Chile, ao não fazê-lo, viu-se exposto ao vexame de uma providência externa, com a prisão, por crime contra a humanidade, em Londres, do ex-ditador Augusto Pinochet, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón, aceito pelo juiz inglês Nicholas Evans.
As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de apontá-las, em seu conjunto, como obstáculo ao restabelecimento da verdade histórica. Não podem ser confundidas (nem se confundir) com sentimentos e interesses de alguns de seus setores, claramente minoritários e reacionários. E só têm a ganhar com o esclarecimento cabal de todo aquele obscuro período, virando de vez uma das páginas mais nefastas da História do Brasil. Enquanto isso não ocorrer, o tema se manterá implacável, a reclamar esclarecimento e reparação judicial, a suscitar dúvidas e suspeitas, que atingem o conjunto das instituições armadas, o que não é justo, nem adequado para o país.
Em conclusão, não se pretende, aqui, ser o detentor da verdade, porém, quando se falta com ela a História fica comprometida e, como já exaustivamente exposto, repetida na sua face clandestina e cruel. Talvez tenha razão Francis Bacon quando diz que “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”. Mas depois de vinte e três anos da Constituição Cidadã, sem erro ou medo, o tempo e a autoridade já estão suficientemente maduros para contar a nossa História. É o que se espera do Congresso Nacional com a aprovação da Comissão da Verdade.
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