Ainda não cheguei sequer à metade da leitura de “Os Engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli, um francês radicado em Milão, e não contenho o entusiasmo em compartilhar a importância dessa obra. O livro é leitura obrigatória para entender como as fake news, os discursos do ódio, as teorias da conspiração, o poder dos algoritmos e a substituição da verdade objetiva e das comprovações científicas pelas falsas narrativas capturam e mobilizam legiões de pessoas pelo mundo, influenciando eleições e elegendo populistas fascistas e genocidas da extrema-direita.
Escrito em 2019, o livro já incorpora a análise do fenômeno bolsonarista, eleito um ano antes, a face mais visível por aqui da força da manipulação das redes sociais na disseminação de fake news para levar ao poder um populista de extrema-direita que, ao longo da história democrática do Brasil – e nos arriscamos a dizer: até mesmo durante das duas ditaduras – jamais teria qualquer chance de empalmar o poder.
Da Empoli retrocede oito anos para assinalar que “no Brasil, várias investigações provaram o papel exercido pelo YouTube na difusão do vírus da Zika. A partir de 2015, enquanto autoridades médicas se esforçavam para distribuir as vacinas e os larvicidas (…), os primeiros vídeos conspiracionistas fizeram sua aparição na rede. Alguns desses vídeos revelavam a suposta existência de um complô das ONGs para exterminar as populações mais pobres, enquanto outros atribuíam a essas mesmas vacinas e larvicidas à propagação do vírus. A popularidade desses filmes criou um clima de desconfiança que levou muitos pais e mães a recusar os procedimentos médicos imprescindíveis para a sobrevivência de seus filhos”. Será que o leitor identifica alguma semelhança com a situação atual, em plena pandemia da covid?
“Nós lutamos diariamente contra o doutor YouTube, e estamos perdendo a batalha”, denunciou um médico na imprensa brasileira.”, prossegue Da Empoli. E conta que um “Ex-funcionário do YouTube, Guillaume Chaslot, explicou claramente de que maneira o algoritmo da plataforma, responsável por 70% dos vídeos assistidos, foi concebido para impulsionar o público na direção dos conteúdos mais extremos, maximizando o nível de engajamento até seus limites. Assim, quem procura informações acerca do sistema solar no YouTube terá diante de si um menu bem farto de vídeos sustentando a teoria da Terra Plana, ao passo que o usuário interessado por questões de saúde será rapidamente reorientado para ideias dos “No Vax”, o momento dos anti-vacina, e dos conspiracionistas. O mesmo mecanismo está acelerado no terreno político. É assim que os brasileiros assistiram, nos últimos anos, à ascensão de uma nova geração de YouTubers de extrema-direita, que souberam explorar o algoritmo da plataforma para multiplicar sua visibilidade (e seu faturamento)”. “É o caso”, continua Da Empoli, “de Carlos Jordy, um fisiculturista coberto de tatuagens que deve sua popularidade, e sua cadeira no Congresso, a uma série de vídeos denunciando um complô dos professores de esquerda para espalhar o comunismo nas escolas”. Jordy, lembro eu, é deputado pelo PSL e já foi condenado por falsa acusação contra o blogueiro Felipe Neto, denunciado por homofobia ao tentar proibir o uso dos banheiros da UFF por transexuais, entre outras acusações.
O leitor já percebeu que estou escancarada e preguiçosamente dando a palavra a Da Empoli, eximindo-me do trabalho de escrever um artigo como faço toda semana. Mas a minha preguiça tem um propósito, me acompanhe. Da Empoli vai adiante: “Ou ainda o exemplo do Movimento Brasil Livre, uma organização fundada durante a campanha a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, dotado de uma poderosa produtora de vídeos para o YouTube que empregava jovens profissionais dedicados à luta contra o que consideram “a ditadura do politicamente correto”. Em outubro de 2018, um de seus membros mais ativos, Kim Kataguiri, foi eleito, aos 22 anos, o mais jovem deputado a integrar o Congresso Nacional. Na mesma ocasião, outros cinco postulantes do MBL fizeram sua entrada no parlamento. Juntos, esses personagens, assim como inúmeras figuras similares, contribuíram para criar o clima que tornou possível a eleição de um ex-militar de extrema-direita, ele mesmo muito popular nas redes sociais, à presidência da república. O vídeo dos apoiadores de Jair Bolsonaro, reunidos em Brasília no dia de sua posse, que gritavam alegremente os nomes do Facebook e do YouTube, rodou o mundo”.
Mais adiante, Da Empoli lembra os “Coletes Amarelos”, na França, e seu crescimento graças aos impulsionamentos pelos algoritmos do Facebook. Os “Coletes” surgiram a partir de reinvindicações legítimas como os protestos contra o aumento dos combustíveis, mas abriram espaço à aparição de grupos como “La France em colére!!!”, essenciais na mobilização e cooptação de milhões de seguidores que iniciaram uma onda de protestos que causou mortes e centenas de feridos. “Mais uma vez – diz Da Empoli – o Facebook funcionou como um formidável multiplicador, nutrindo-se dos ingredientes mais díspares para disseminar uma epidemia de cólera que se transferiu da dimensão virtual para a realidade”.
Os especialistas da Big Data – esses nerds da informática que sabem como ninguém se utilizar das técnicas de manipulação de consciências através do uso da tecnologia – são craques em converter as “deficiências” dos líderes populistas em qualidades. A foto de Bolsonaro comendo pizza na rua em Nova York porque não se vacinou foi convertida em demonstração de que se trata de uma pessoa simples, que come na rua como qualquer outra. Sua inexperiência é traduzida como demonstração de que não pratica a “velha política”. Mas, enfatiza Da Empoli, “No mundo de Donald Trump, Boris Johnson, Matteo Salvini e Jair Bolsonaro, cada dia traz sua própria gafe, sua própria polêmica, seu próprio golpe brilhante. No entanto, por trás do carnaval populista, está o trabalho árduo de ideólogos e cada vez mais, de cientistas especialistas do Big Data, sem os quais esses líderes nunca teriam chegado ao poder”.
Se estivesse no lugar de quem chegou até aqui, eu compraria AGORA um exemplar do livro e iniciaria a leitura. O que está escrito acima vale só como aperitivo. O buraco é muuuuuito mais embaixo. E é preciso ter, pelo menos, uma informação básica sobre o que está acontecendo, para não ser ingenuamente empurrado para o fundo desse buraco.
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