Em parceria com o fotógrafo, professor e designer gráfico Andreas Valentin, escrevi dois livros sobre a festa dos bumbás de Parintins, um dos espetáculos populares mais lindos do Brasil: “Vermelho – Um Pessoal Garantido” e “Caprichoso – A Terra é azul”. Ao revirar as origens da festa, descobrimos histórias curiosíssimas. Na bela ilha do arquipélago das Tupinambaranas, no Médio Amazonas, os desfiles dos bois Garantido e Caprichoso do passado – quando ainda não havia o Bumbódromo, uma espécie de estádio construído especialmente para a festa em que as torcidas são separadas com muita clareza e um não invade o espaço do outro – os desfiles dos dois bois não podiam se cruzar. O pau quebrava na certa, era gente ferida, alegorias e fantasias destroçadas, prisões e até mortes. Os próprios bois de pano iam parar no xilindró até que os ânimos se acalmassem e eles voltassem a puxar o desfile de seus torcedores.
A lembrança vem a propósito da expectativa para as manifestações deste 7 de setembro. Analistas conceituados da cena política torcem por manifestações pacíficas, particularmente na Avenida Paulista e na Esplanada dos Ministérios. Torcem. O problema é que torcida é uma coisa, e a chance de tudo ocorrer dentro da ordem é outra, bem diferente. Apesar de todos os apelos em favor da pacificação dos ânimos, de que os atos sejam ordeiros, ninguém aposta um níquel na possibilidade de que o dia da Independência será comemorado em paz e harmonia. Pelo contrário. A expectativa é a de que fatos graves possam acontecer. Autoridades vêm adotando medidas extraordinárias. Em São Paulo, o governador João Doria exagerou, chegando a proibir manifestações contra Bolsonaro, decisão anulada pela justiça paulista. Ele próprio anunciou depois como ocorrerão as manifestações: “Vamos seguir a orientação do juiz. Os que são contra Bolsonaro poderão se manifestar no Anhangabaú. E os que são pró-Bolsonaro vão se reunir na Avenida Paulista O que nós não queremos e um encontro dos que são a favor e dos que são contra, isto seria nocivo e colocaria em risco até a integridade física dos manifestantes”. Bem parecido com a Parintins de antigamente… E anunciou uma série de medidas como revista de bolsas, mochilas, sacolas e bolsos em busca de armas perfurantes, de corte ou de fogo, de todos os manifestantes, até mesmo de policiais aposentados. Em Brasília, o governo local anunciou medidas semelhantes e ainda mais severas, como a proibição do porte de fogos de artifício, apontadores de laser, artefatos explosivos, sprays, mastros para sustentar bandeiras, garrafas de vidro, drogas, substâncias inflamáveis e até de armas de brinquedo. A intenção é impedir eventuais tentativas de invasão dos prédios do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Líderes de partidos aliados de Bolsonaro inclinam-se a pedir aos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo que acionem as Forças Armadas para garantir a proteção dos prédios da Praça dos Três Poderes. E olha que este ano não haverá o tradicional desfile militares na Esplanada…
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Polícia para quem precisa de polícia?
Mas bem aí reside o ponto nevrálgico do problema. Policiais militares em todos os estados, querem e vão participar das manifestações políticas, apesar das proibições neste sentido. Alguém de bom senso acredita que um policial militar vai se sujeitar a uma revista? Como se comportarão seus colegas de farda destinados a garantir a segurança das manifestações? Quem garante sua isenção para atuar contra colegas eventualmente apanhados em atos ou intenções criminosas?
O problema ganha dimensões mais complexas quando se observa que “bombeiros” de todos os setores entraram em ação. CNBB, lideranças do grande capital, dos setores financeiros, até mesmo do agronegócio que sempre apoiou Bolsonaro, além de OAB, CNBB, e dos presidentes das duas casas do legislativo e do judiciário conclamaram os manifestantes a se portarem dentro da lei e nos limites da democracia. O deputado Arhur Lira, presidente da Câmara, chegou a afirmar, sabe-se lá com base em quê, que “não ocorrerá nada de grave no dia 7 de setembro”. Tomara.
Bolsonaro é o imponderável
Mas é preciso considerar o imponderável de um presidente da república que dia sim e outro também ataca instituições basilares do estado democrático de direito como o Supremo, apoia atos em favor de sua extinção, condena as punições a quem apoia atos antidemocráticos, como a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson e a exclusão das contas de extremistas de direita disseminadores e impulsionadores de fake news como o blogueiro Allan dos Santos. Ou seja: Bolsonaro insufla até o deslimite da irresponsabilidade a sua manada contra as instituições do estado na sua marcha batida em busca de sua manutenção no poder, única garantia que vislumbra pra não sair da presidência num camburão da Polícia Federal. Mas aí, tipo “pra não dizer que não falei de flores”, diz de raspão, que os manifestantes vão apenas protestar contra decisões judiciais que, segundo ele, violam a liberdade de expressão. E, apesar de todos os atos violentos já praticados pelos seus apoiadores, afirma candidamente que eles “são pessoas pacíficas, ordeiras, trabalhadores, trabalhadoras”. É para acreditar, é?
Conversa. A manada, que veio de toda parte e já lotou em 100% a capacidade da rede hoteleira de Brasília, não quer nem ouvir falar em serenidade e equilíbrio. Pois foi nutrida e treinada pelo capitão-presidente no acirramento dos ânimos, no confronto, na beligerância, no poder da porrada, do pau-de-fogo e do cheiro de pólvora. Não sabe que a torcida do boi branco não pode invadir a torcida do boi preto, pois isso é contra o regulamento da festa democrática dos bumbás. A única esperança é que, neste 7 de setembro, os garantidos e os caprichosos da polarização política atual se respeitem e desfilem bem longe um do outro. Senão-senão…
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