Tatiane dos Santos Duarte*
O Brasil foi constituído historicamente por processos de violências de cunho religioso que sacramentaram o Deus cristão sobre as cosmologias e crenças de povos indígenas e negros, cujas divindades relacionais e plurais não cabiam no espelho do colonizador (NOGUEIRA, 2020). Apagada pelas teorias de democracia racial e políticas de embranquecimento, a herança cultural negra não fez parte dos “quadros expostos nos prédios e casas” e “bustos colocados nas praças” cujos “heróis e personalidades” eram os brancos, colonizadores e herdeiros da terra (DUARTE, 2020, p. 108-109).
Diluindo as diversidades étnico-raciais na constituição do Estado-Nação, a história oficial do país tornou-se única, sincrética, eugênica, ideologicamente eurocêntrica, despovoada de outros povos e culturas. Esta história única, racialmente branca, fez do Brasil uma Nação forjada por estigmas raciais quando práticas, rituais e expressões culturais e religiosas dos povos negros escravizados foram marcadas negativamente em dicotômica oposição às expressões religiosas europeias positivadas.
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Assim, ao longo da própria República os símbolos cristãos foram sendo apreendidos, percebidos e reverenciados como símbolos da Nação ao passo que as comunidades negras e povos de terreiro eram perseguidos pelo Estado. Contemporaneamente, apesar dos avanços legais, há ainda uma “cristianização da política e da sociedade” brasileira (NOGUEIRA, 2020, p. 29) que desconsidera as diversidades e pluralidades que também compõem a sociedade, mas não se abstêm de pronunciar nossa maioria religiosa cristã mesmo que em nome da laicidade do Estado.
Estado laico que estais nos céus, Santificado seja vosso nome!
O princípio da laicidade estabelece que não haja uma religião oficial de Estado e que esse deve garantir a isonomia entre todas as expressões religiosas e não religiosas e a liberdade individual de crença e de não crença. No Brasil, a laicidade tem formulação recente e inserção política gradual sendo conduzida também por grupos religiosos que têm atuado no Estado através do regime de “separação com colaboração” (ZYLBERSZTAJN, 2016). Logo, é um conceito que continua em disputa pelos diferentes atores sociais sendo, diversas vezes, por alguns deles colocado em xeque ou instrumentalizado segundo suas vontades políticas.
Por exemplo, quando em posicionamentos e discursos oficiais como presidente, Bolsonaro afirma “Deus Acima De Todos!” qual o sentido de laicidade evocado? Sobretudo, aquele que estabelece que os supostos valores religiosos da maioria da população brasileira devem ser garantidos, mesmo baseados por uma teologia “sustentada na memória do Cristo europeu colonizador: sacrificialista e expiatório das minorias sociais” (PY, 2020, p. 25). É a partir dessa leitura teológica “terrivelmente cristã” que setores do cristianismo conservador vêm participando da política, sendo em alguma medida o discurso esperado por suas bases políticas que desejam resgatar um passado da tradição e dos bons costumes, valores religiosos e modelos familiares e de gênero tradicionais, as moralidades necessárias para o desenvolvimento nacional.
A Laicidade nossa de cada dia nos dai hoje…
Ora, como construir um sistema político mais democrático diante de uma “higienização das coisas pretas” (NOGUEIRA, 2020 p. 14) como ação de Estado em uma sociedade majoritariamente composta por não brancos e marcada por enormes desigualdades raciais no mercado de trabalho, na educação, na política? Quais os efeitos da atual extirpação das diversidades étnico-raciais pelo governo quando os corpos que avolumam os números de assassinatos e a população carcerária são pretos?
A atual empreitada do presidente da Fundação Palmares é ato componente desse projeto necropolítico de conteúdo extremamente simbólico: mais “uma satanização secular” (NOGUEIRA, 2020) dos povos pretos realizada de forma institucional, em nome da laicidade travestida de símbolos culturais da Nação. O edital de escolha do novo símbolo da Palmares publicado com a justificativa de que o estado é laico e que uma entidade pública não poderia trazer em sua identidade visual um símbolo religioso, é mais um capítulo da longa história de racismo estrutural do Estado brasileiro.
E qual seria o motivo do escândalo dessa nação acostumada com processos de embranquecimento e que continua a revelar apenas um retrato sobre o Brasil? Por qual motivo o oxê africano como símbolo de uma organização criada para defender e difundir a cultura negra seria uma controvérsia para os sentidos de laicidade? O atual presidente da Palmares afirma que o machado do orixá africano da justiça não é um símbolo do país, mas um símbolo de uma tradição religiosa, e que o estado é laico.
Sabemos que os crucifixos instalados nas cortes e parlamentos do país seguem como “fonte básica dos direitos e das normas sociais” agindo como uma espécie de “guardião da memória coletiva da tradição bem como elemento crucial em nossa formação social e cultural” (RANQUELAT, 2014, p. 67). Como símbolos da cultura religiosa desse povo cristão, ocupam o ambiente laico de forma positivada e visível porque seriam benéficos para a ação dos agentes públicos. Deste modo, o oxê é símbolo que precisa ser retirado como tantos outros da mesma origem ancestral para ser trocado por um que se assemelhe àqueles que já ocupam os espaços públicos e ambientes laicos da República cristã do Brasil: bíblias e crucifixos. Deus seja louvado!
Essa ação é igualmente repleta de significado político porque traz uma controvérsia ao avesso. Colocam-se como defensores da laicidade, mas bradando Deus acima de tudo, trazendo para a opinião e noção públicas a ideia de que apenas alguns símbolos nacionais são culturalmente válidos e não perniciosos para a laicidade, aqueles de determinada herança, ancestralidade, religião. Refutam, assim, o machado do Xangô como símbolo que dialoga com a história da Nação, satanizam as heranças pretas como maléficas para a Pátria e as ações públicas, em nome do Estado laico. Oxêmacula a laicidade do Estado, a laicidade branca e cristã. Assim, esvaziam a laicidade como princípio que abarca as diversidades instrumentalizando-a para afirmar um patriotismo verde amarelo de cunho nacionalista, racista e excludente.
Ou seja, é mais do que as contradições e controvérsias da laicidade no Brasil, é uma reafirmação ideológica do atual governo que de forma persistente tem promovido ataques aos símbolos, crenças e expressões religiosas de matriz africana pelos próprios agentes públicos. Tal ação visa reestabelecer a ordem epistemológica, o poder hegemônico e normatizador da cultura eurocêntrica cristã através do “epistemicídio de práticas e saberes de resistência que compõem a memória africana da diáspora” (NOGUEIRA, 2020). Por isso, são ataques contra todo o sistema de crença, manifestação e expressão que não são parte do Um hegemônico que o atual presidente adora se outorgar fiel representante. E são ataques à laicidade que defendemos em um país plural: aquela que garante que as religiões minoritárias sejam destinatárias de políticas públicas e que o Estado atue no enfrentamento ao racismo, pela valorização das diversidades sociais e étnicas e por uma agenda política democrática.
Livrai-nos de todo o Mal… Amém!
Diante disso, é preciso afirmar que as recentes colocações do Presidente da Fundação Palmares sobre a exclusão do símbolo da entidade conectam-se com uma longa história de criminalização e exclusão das “práticas escuras, pretas, denegridas” (NOGUEIRA, 2020, p. 15) do Estado e da sociedade. E atualmente é agenda governamental. Vide os quadros das divindades africanas retirados do Palácio presidencial sob a justificativa que o ambiente do Estado é laico e editais públicos que estabelecem o resgate dos valores cristãos nas artes em geral e em nome da nacionalidade verde e amarela embranquecida. Utilizam-se da laicidade, tão importante para a agenda dos direitos humanos, para negar os princípios constitucionais e os direitos das diversidades, e a associa a uma identidade nacional única, a cristã.
Esse cenário nos desafia enquanto plataforma por um sistema político antirracista, pois, em nome da laicidade está se validando uma série de decisões políticas de cunho racista. Por isso, são ações atrozes que contêm perigos reais porque colocam em risco os direitos das diversidades religiosas e não religiosas, a democracia e até mesmo o sistema eleitoral que desejamos aprimorar. Para enfrentar essa ação perniciosa, é necessário pensarmos sobre os limites do religioso e da laicidade (e suas relações) e como precisam ser considerados segundo as mediações necessárias diante de verdades religiosas de cunho fundamentalista que proclamam cada dia mais legitimamente racismo religioso, em nome de uma identidade nacional e de uma democracia laica.
Que Xangô nos dê justiça!
Referências:
DUARTE, Tatiane dos S. “O avesso do mesmo lugar”: enfrentamentos aos racismos religiosos em mais um capítulo de história única. Estudos afro-brasileiros, n.1. 2021, p. 1-15.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.
- Fábio. “Pandemia cristofascista”. In: ANJOS, Fellipe; MOURA, João Luiz (orgs.), SÉRIE #contágiosinfernais. São Paulo: Editora Recriar. p.1-53, 2020.
RANQUETAT JR., César Alberto. A presença da Bíblia e do crucifixo em espaços públicos do Brasil: religião, cultura e nação. In: ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto; CIPRIANI, Roberto; GIUMBELLI Emerson (eds.). A religião no espaço público: atores e objetos. São Paulo: Terceiro Nome, 2012, p. 61-79.
ZYLBERSZTAJN, Joana. A laicidade do Estado brasileiro. Brasília: Verbena Editora, 2016.
*Tatiane dos Santos Duarte é doutora em antropologia social, integrante do Movimento Espiritualidades em Ação e participante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
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