No Brasil, negras e negros sempre tiveram na religião um lugar para integração e afirmação pessoal. Nós, do Ilê Axé Opo Afonjá, temos a nossa árvore genealógica ancestral associada à família de santo criada por Iya Oba Biyi. Somos uma família que vai muito além dos limites dos laços de sangue que envolveram pessoas das mais diversas etnias sequestradas do Continente Africano, propiciando assim um parentesco emblemático, conforme pesquisa do saudoso Mestre e Obá Vivaldo da Costa Lima com a sua pesquisa intitulada Família de Santo nos Candomblés Jeje-Nagô da Bahia, um estudo de relações intergrupais, junto a Universidade Federal da Bahia.
O terreiro é um lugar dialógico, condição que legitima ações e interconexões com a história, o direito, as ciências, a educação, a ancestralidade, a ética e a tradição que não se confunde com os fundamentos da religião.
O fundamento, para nossa religião, é o que está muito mais abaixo de onde estamos atuando. É o invisível, é o que não se diz. Entende-se, assim, que o fundamento, como vivenciamos, é um conjunto de elementos que por si só não se explica.
É a complexidade, é o simbólico, o mistério. O simbólico, materializado ou não, ocupa todo o espaço sagrado que é o próprio terreiro onde se vive ritualisticamente, completando o sentido basilar da nossa religião. Esta é uma razão pela qual se faz necessário distinguir as peculiaridades do lugar terreiro como território mítico de resistência política, proteção, religião e cuidado com o outro.
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O terreiro é o lugar de onde brota uma comunidade negra. É um sistema complexo e dinâmico até por sua diversidade étnica oriunda do Continente Africano e sua aproximação interrelacional, motivo pelo qual pode acionar ou ser acionado, quando atacado na sua tradição e nos fundamentos da religião que é afro-brasileira.
A relevância está na consideração de fatos e eventos relacionados à religião na medida em que nos legitima como Comunidade Tradicional. Isto significa ainda que a afirmação da nossa consciência histórica se junta aos saberes do pensamento africano recriado na diáspora.
Importante considerar que a legislação sobre Comunidades Tradicionais, desde a Constituição de 1988, vem sendo tratada com grande consistência de embasamentos e argumentos, estabelecendo estruturas de proteção jurídica aos diversos elementos culturais, materiais e imateriais das referidas comunidades.
Neste contexto, propaga-se o respeito que organiza estas comunidades, apontando para solidariedade que potencializa o sentido mais amplo e nos remete à história da nossa própria origem como povo de ascendência africana, construtor das riquezas deste país, onde somos 53% de afrodescendentes.
Isto nos traz uma consequência positiva em relação ao encontro das leis com os fundamentos da religião, que é do domínio do povo de santo e se faz imprescindível para a circulação de um juízo plural, abrindo espaço para novas formas de conhecimentos que não se restringem ao modelo tradicional das leis genéricas, mas evolui na medida em que se percebe não ser mais possível ignorar a diversidade cultural no Brasil.
Vivemos o tempo da necessidade de aproximação com outros indicadores sociais devido a inaceitáveis movimentos que nos instigam para uma visão de mundo, na sua complexidade, com valores antes desconsiderados e a consciência histórica que nos aparta de qualquer projeto globalizante.
Não seria este o momento para um enfoque transdisciplinar como está inscrito no movimento do nosso cérebro na interação dinâmica entre seus dois hemisférios? Não seria este o momento para intensificar também reflexões internas, para além dos conhecimentos de axé, incluindo a consciência histórica, o imaginário e o simbólico que nos reúnem? Nada e ninguém deve ser excluído das decisões da comunidade. Não somos árvores isoladas. Somos uma densa floresta, árvores que se abraçam e se protegem.
A partir da Constituição de 1988, a legislação brasileira passou a tratar a cultura e os bens culturais de forma estruturante, destinando uma seção específica ao assunto, reconhecendo e protegendo o pluralismo cultural e a diversidade de valores dos grupos étnicos integrantes do nosso processo civilizatório.
O fundamento, como é definido nos terreiros, não existe de forma isolada, faz parte de um sistema que importa, também, a consciência histórica, que afirma os terreiros e quilombos como importantes pontos de resistência contra a submissão de classe, de raça e de gênero e não pode ser subestimado no seu caráter subjetivo e sua legitimidade negra que acolhe a todos e todas sem distinção.
É imprescindível que negras e negros sejam incluídas e incluídos como filhos e filhas de uma única família ancestral, parte deste sistema onde nos incluímos como povo de santo.
Acreditamos na força do axé em movimento, no fundamento, na existência do terreiro como território sagrado, comprometido com um futuro lastreado na memória do nosso passado ancestral, como consciência organizadora e seus efeitos práticos que estruturam a comunidade e que nos protege com sua inequívoca força da tradição africana recriada entre nós.
Assim também somos nós em relação ao terreiro. Pelo axé recebido de Mãe Stella, nossa mãe ancestral, nos tornamos um único corpo, um tronco vivo formado por corpos pretos do presente e do passado que se abraçam enquanto aguardamos a hora solene da posse da nossa Iya Ana de Xango que já responde como dileta Mãe do axé, herança de cinco grandes Mães que lhe antecederam .
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