O Brasil vive um longo e conturbado processo que resultou, a partir de mensuração quantitativa, que apenas reflete a superfície do contexto político, em mais uma década perdida, a primeira desde a redemocratização. O recém-lançado IV Relatório Luz do GT da Sociedade Civil para a Agenda 2030 no país (RL 2020), que analisa a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) desde sua assinatura, em 2015, até o primeiro semestre deste ano, expõe um quadro de evidentes (porque o faz com evidências) retrocessos econômicos, sociais e ambientais que comprometem a capacidade do país de reagir à sua prolongada estagnação e cumprir os preceitos da Constituição Federal, que neste 5 de outubro completa 32 anos. Especialmente agora, no contexto da covid-19.
Hoje é um dia importante para lembrar que a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, midiatizada teto de gastos, sob uma premissa fiscal de conjuntura marcada por uma recessão singular de três anos, colocou uma camisa de força no planejamento orçamentário de áreas essenciais para o país, reduzindo os investimentos no desenvolvimento humano – saúde, educação, assistência social, ciência e tecnologia – para cumprir contratos de dívida pública. Gastos em infraestrutura de cimento e concreto, no entanto, não foram afetados pelos cortes, o que indica a falta de entendimento generalizado sobre o que alimenta a dívida pública: baixo retorno nos gastos públicos em infraestrutura executada abaixo do padrão internacional por empresas privadas, resultante tanto de incapacidade técnica quanto de desvios ético-políticos.
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Portanto, mesmo cortando recursos essenciais para a área social e de fomento à inovação e criatividade, a EC 95 não reduziu a dívida pública como prometido. Ao contrário, ela continuou crescendo. Tampouco afetou positivamente o déficit primário, o principal foco dessa emenda, mas foi eficiente em comprometer a capacidade de desenvolvimento nacional também em médio e longo prazos. Somos o quinto país mais desigual do mundo, mesmo sendo nono em tamanho do PIB e seguimos dependentes de volumes de exportação de produtos primários de baixo valor agregado, presos na armadilha das commodities, com políticas econômicas que se negam a investir em desenvolvimento humano e, assim, conseguir diversificar a matriz produtiva.
A primeira mudança necessária, hoje, passa pela própria nomenclatura. O orçamento para a área social não é, e não pode ser enunciado em discursos e narrativas, como gasto, pois é, de fato, um investimento com alto retorno, um meio para um país se tornar desenvolvido e se constituir uma nação inclusiva.
Hoje também é dia para lembrar que os projetos de lei para o orçamento federal de 2021 – PLOA e PLDO –, enviados pelo Executivo ao Congresso Nacional, continuam o caminho de retrocesso da agenda de direitos constitucionais, ampliando as lacunas de financiamento para a saúde, educação, segurança alimentar e assistência social, enquanto aumenta significativamente os recursos para os ministérios da Defesa (~2%), Segurança Pública (~3%) e Cidadania (~9%), sendo este um organismo puramente ideológico sem ações efetivas, como mostra o Relatório Luz 2020, com o desinvestimento em áreas estratégicas como o Bolsa Gestante e o programa de redução da violência contra a mulher.
PublicidadeAs soluções existem. E elas baseiam-se em dados e evidências – é isso que mostra a coalizão de organizações da sociedade civil, a Direitos Valem Mais, que em parceria com economistas da academia e de instituições de controle e monitoramento público produziu uma nota técnica que demonstra quais os pisos mínimos necessários para quatro áreas essenciais para o desenvolvimento humano no Brasil. Apenas em saúde e educação a lacuna de financiamento é superior a R$ 80 bilhões, acelerando o afastamento do país do caminho dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades. Ao concluir a leitura dessa nota certamente não sobram dúvidas de como a atual política econômica está sendo conduzida com má fé, parte de um desmonte e desarticulação institucional sem precedentes no período democrático, ignorando direitos assegurados pela Constituição Federal. Diante de tal quadro, cabe ao Congresso Nacional a responsabilidade de “garantir que a Constituição caiba no orçamento”.
A teoria econômica tem mudado muito rapidamente no debate internacional. A narrativa repetitiva do Estado mínimo e outras teses neoliberais defendidas sem questionamento nos corredores do Congresso e em telas de TV já não têm mais qualquer crédito em face da necessidade imposta pela pandemia da covid-19. O Estado mostrou-se o ente mais importante de qualquer economia, o garantidor e investidor de última instância para o desenvolvimento de uma nação. Na hora do aperto, o capital privado, tão adorado em discursos, não apresentou alternativa alguma e foge para paraísos fiscais (RL 2020).
É grave que o Estado brasileiro siga tentando fugir de seus deveres, principalmente com a desculpa de falta de recursos. Não após a pandemia mostrar a facilidade com que o Banco Central abriu a torneira monetária e injetou centenas de bilhões de reais para manter o mercado de capitais funcionando, enquanto a defesa da continuidade da renda emergencial para as pessoas mais vulneráveis suscita as mais bizarras e cruéis admoestações.
Ademais, é preciso que o Congresso Nacional entenda que o Brasil é um país ainda atrasado e em desenvolvimento arrastado, que mesmo tendo acesso a tecnologias compatíveis no mundo, não produz nem cria tais tecnologias. Somos dependentes e não devia haver menor orgulho nisso. Para sair desse ciclo, só tem um jeito: investir nas pessoas e, para isso, mudar os PLOA e PLDO enviados. Já passou da hora, mas nunca é tarde para protagonizar a defesa dos princípios e direitos fundamentais da Constituição, a nossa vilipendiada aniversariante do dia.
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