Alex Pegna Hercog*
Engana-se quem pensa que um golpe de Estado se dá de supetão, alheio à institucionalidade. Sobretudo, quando o próprio presidente da República faz essa ameaça. Aliás, anuncia. Bolsonaro já avisou: após o resultado eleitoral de 2022, caso derrotado, tentará um golpe.
Diante das manifestações que cobram seu impeachment, queda na popularidade e nas intenções de voto e seu envolvimento em denúncias de corrupção e crimes contra a humanidade, Bolsonaro tem reiterado sua promessa. Imitando o seu guru platônico, Donald Trump, o presidente já anuncia a repetição da cartilha: afirmará, sem provas, que houve fraude eleitoral e tentará seduzir a população e forças armadas para irem às ruas defender o mandato que não lhe foi concedido pelas urnas.
No entanto, diante da tentativa frustrada do ex-presidente estadunidense, Bolsonaro tem aproveitado o seu tempo para ir preparando um terreno mais favorável à sua tentativa. Para além da atuação no submundo da internet, o presidente tem aproveitado o cargo para construir, na institucionalidade, alguns pilares de sustentação da sua aspiração golpista.
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“Intervenção militar constitucional”
Entre os bolsonaristas sempre foi comum o pedido de “intervenção militar constitucional”. Uma versão “formal” para pedir um golpe de Estado, sucedido de uma ditadura militar. Mas interessante é observar que, mesmo defendendo uma proposta inconstitucional e antidemocrática, há essa preocupação com as instituições e com a legitimidade do processo.
O próprio impeachment de Dilma Rousseff seguiu o rito constitucional. O contestado “crime de responsabilidade” foi mero detalhe. O importante é que o Congresso seguiu toda a formalidade do processo, com o Supremo, com tudo. “Golpe” ou “Impeachment” motivou uma disputa de narrativa à época e sua definição ficou para quem escreverá a história no futuro.
A ditadura militar também seguiu ritos formais. Entre 1964 e 1968, o governo militar publicou quatro atos institucionais (AI), que pavimentaram a ocupação militar no poder Executivo e na administração pública. No dia 13 de dezembro de 1968, o quinto ato sepultou de vez a democracia. O AI-5, no entanto, também não foi de supetão.
Apesar dos atos restritivos, em 1968 o Congresso ainda funcionava. Foi quando, em setembro, o deputado Márcio Moreira Alves fez um discurso inflamado, denunciando as Forças Armadas pela morte do estudante secundarista Édson Luís de Lima Souto. Ofendidos, os militares, usando a Constituição e a Procuradoria-Geral da República, pediram ao Supremo Tribunal Federal, que pediu ao Congresso, a suspensão da imunidade parlamentar do deputado. No dia 12 de dezembro, os parlamentares rejeitaram o pedido. No dia seguinte, o AI-5 foi publicado, iniciando os “anos de chumbo” da ditadura. Ao todo, o regime militar decretou 17 atos.
Projetos preparam terreno para o golpe anunciado
Com mais de um ano para a realização das eleições de 2022, Bolsonaro vem construindo um terreno favorável. Do ponto de vista da narrativa, a PEC 135/2019, que determina o voto impresso auditável, é o principal projeto que sustentará o discurso bolsonarista de que houve/haverá fraude nas urnas eletrônicas, caso o presidente não seja reeleito.
Suas reiteradas acusações infundadas de fraude eleitoral fizeram com que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lhe solicitasse provas. “Não tenho que apresentar provas”, respondeu Bolsonaro. Governistas já preveem a rejeição ao projeto no Congresso. O próprio ministro do TSE, Roberto Barroso vem se posicionando contrário à proposta: não há orçamento para sua implementação em 2022, não há condições logísticas para atender todas as urnas, há riscos à segurança eleitoral e não há motivos para retroceder, visto que as urnas eletrônicas são auditáveis e nunca ofereceram indícios que justificassem essa desconfiança.
Talvez seja justamente isso que os bolsonaristas desejam: a rejeição do Congresso à PEC 135. Assim, em caso de uma derrota eleitoral, poderão afirmar – como já vem afirmando Bolsonaro – que houve fraude. “Eu tô avisando com antecedência aos senhores (…) ministros do Supremo Tribunal Federal (…) vamos supor que o Congresso não aprove [a PEC] (…) teremos problemas nas eleições do ano que vem. Eu entrego a faixa presidencial para qualquer um que ganhar de mim na urna de forma limpa. Na fraude, não”, anunciou Bolsonaro durante live nas redes sociais, no dia 1º de julho.
Portanto, o debate que poderia ser útil e técnico sobre o aumento da segurança das urnas e caminhos para ampliar a transparência do processo foi substituído por acusações contra a urna eletrônica, apresentando o voto impresso como tábua de salvação. Em vez de buscar melhorias no sistema, o presidente prefere atacar o modelo atual, deslegitimando qualquer resultado que não lhe agrade e condicionando a aceitação do resultado de 2022 à aprovação da PEC 135.
Para além da disputa de narrativa, outros projetos vêm servindo para ocupar a máquina pública e atrair apoio das Forças Armadas. Não bastasse os privilégios concedidos aos militares em reformas anteriores, a intervenção na Polícia Federal e distribuição de cargos para os militares, recentemente fontes do governo federal anunciaram uma linha de crédito imobiliário especial para agentes de segurança pública, que pode chegar ao valor total de R$ 100 milhões. Além disso, as recentes ameaças das Forças Armadas ao presidente da CPI, Omar Aziz, sugere um alinhamento do alto comando com o governo Bolsonaro.
Já a prometida reforma administrativa (PEC 21/2020) pretende radicalizar a intervenção do governo federal na máquina estatal. Atualmente, o presidente da República tem o poder de nomear 6 mil pessoas para cargos públicos comissionados. Se a reforma for aprovada do jeito que está, esse número será ampliado para cerca de 90 mil, no âmbito federal, e mais de 200 mil nos estados e municípios. Sem necessidade de prestar concurso público e dependendo da indicação do presidente, esse quantitativo serviria não apenas para barganhar apoio em ano eleitoral, como aparelharia o Estado em setores estratégicos.
O apoio do Congresso tem sido construído a partir dessa lógica do aparelhamento e liberação de recursos. Desde que abandonou o discurso contra a “velha política” e se aliou a políticos e partidos fisiologistas (ou “Centrão), Bolsonaro já conseguiu emplacar seus indicados à presidência das duas casas legislativas, com destaque para Arthur Lira, principal responsável por não avançar os processos de impeachment contra Bolsonaro na Câmara. Em maio, a imprensa revelou um esquema de “emendas secretas” oferecidas aos parlamentares para obras de infraestrutura em seus estados, burlando o orçamento oficial.
Por enquanto, o velho “toma lá, dá cá” tem garantido sustentação ao governo no Congresso. Bolsonaro também tem na Procuradoria-Geral da República um fiel escudeiro, Augusto Aras, graças à sua carta na manga: a indicação a uma vaga no Supremo, inicialmente prometida para um aliado político “terrivelmente evangélico”. Com duas indicações durante o atual mandato, caso reeleito, Bolsonaro poderia indicar outros dois ministros em 2023.
Repressão institucionalizada
Enquanto avança sobre a máquina pública, Bolsonaro também busca ampliar seu arcabouço jurídico para viabilizar uma política repressora. Recentemente, a polícia – ou “meu Exército”, como o presidente prefere se referir – tem ressuscitado a famigerada Lei de Segurança Nacional. Em março de 2021, a polícia militar foi até a casa de um jovem de 24 anos, em Uberlândia (MG), e o prendeu em flagrante – alegaram a aplicação dessa lei, após o rapaz publicar em sua rede social: “Gente, Bolsonaro em Udia amanhã… alguém fecha virar herói nacional?”.
Em maio, na cidade de Trindade (GO), policiais militares encaminharam à delegacia o professor Arquidones Bites por adesivar em seu carro a frase “Bolsonaro Genocida”, durante manifestação contra o presidente. Diante dos abusos, o Congresso resolveu reagir e tenta revogar a Lei de Segurança Nacional (LSN), chamada de “entulho da ditadura”. Aprovado pela Câmara, o projeto encontra-se no Senado, com a relatoria do senador Rogério Carvalho (PT). No entanto, o PL 2.108/2021, que revoga a LSN, ainda tem sido alvo de críticas pelos movimentos sociais, já que o texto atual ainda dá brechas para interpretações autoritárias.
Sem perder tempo, o governo fez andar o PL 1.595/2019, que prevê ações para prevenir e reprimir atos terroristas. O projeto do deputado Vitor Hugo (PSL) será apreciado por uma Comissão Especial que foi instalada no dia 29 de junho. Os parlamentares contrários afirmam que o projeto institui um “Estado de Exceção Permanente”, pautado no vigilantismo contra um suposto “inimigo interno”.
O texto apresentado no PL prevê uso de identidade falsa por policiais e excludentes de ilicitude em diversos casos. Também permite que o presidente amplie o aparelhamento dos órgãos de segurança pública, o que vem sendo criticado por diversas entidades policiais. Além disso, o projeto prevê medidas inconstitucionais, como a criminalização de indivíduos que “pareçam ter intenções” de “intimidar ou coagir a população ou afetar a definição de políticas públicas”.
A subjetividade e alcance do texto proposto põe em risco qualquer pessoa ou movimento de oposição ao presidente. A própria Organização das Nações Unidas (ONU) enviou carta ao governo brasileiro pedindo que reconsiderasse a aprovação da lei, que traria risco de silenciamento da oposição. Entidades também estão se mobilizando para impedir a aprovação do projeto, que criminaliza os movimentos sociais e pode ser aplicado contra qualquer manifestante, grevista ou crítico ao governo.
Assim, aos poucos e pelas beiradas, Bolsonaro vai montando seu aparato institucional para aplicar o golpe prometido. Para seu exército digital, ele deixará o trabalho de deslegitimar o processo eleitoral de 2022 e rejeitar uma eventual derrota. Em busca de apoio dos militares, seguirá distribuindo cargos, créditos e privilégios. E, junto à sua bancada no Congresso, continuará emplacando projetos autoritários que servirão para fazer valer a máxima da política nacional: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
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*Alex Pegna Hercog – comunicador social, membro do coletivo Intervozes e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
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