Caro leitor, não espere desse texto a marca da impessoalidade que acompanha o uso da 3ª pessoa do singular em alguns gêneros textuais. Não teremos neutralidade ou omitiremos o sujeito, porque irei homenagear uma pessoa importante para mim e para o mundo. Sim, para o mundo. Hoje vou escrever sobre e para o Januário Garcia Filho, que para uns era o negro fotógrafo e para outros era um Griot, mestre, pai e um amigo verdadeiro.
Janu e eu nos conhecemos pessoalmente em sua exposição Rio de Todas as Áfricas: Diásporas Cariocas nas Lentes de Januário Garcia. Poucas vezes temos a possibilidade de conhecer os autores das obras de arte que vemos nos lugares por onde passamos, mas naquele dia pude conhecer o artista e sua obra. A exposição contava com 22 fotografias que retratavam a cultura negra a partir da década de 1970 e, ao visitá-la com a turma do curso de fotografia, tivemos a oportunidade de ter a mediação feita pelo próprio Januário.
Lembro-me como se fosse hoje das sensações que tive, ao observar cada fotografia, e ouvir de sua boca as histórias sobre a captura daquelas imagens e como devolvê-las para os fotografados era uma ação importante de seu trabalho. Entre uma fala e outra, não pude deixar de pensar em como era incrível ver um homem negro de sua idade ocupar aquele espaço e como nós, negros, também poderíamos nos retratar sem nos tornar reféns de uma representação imagética que nunca nos contemplou.
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Como um verdadeiro Griot, Janu tinha o dom de contar histórias e o fazia com tanta amabilidade que encantava qualquer pessoa. Com/dono de um sorriso largo, vestido com uma blusa social azul e sua tradicional boina nas cores preta, vermelha, verde e amarela, ele falava com leveza sobre o papel social do nosso trabalho enquanto negros fotógrafos.
Para o Janu, a fotografia era/é um veículo de transformação social e valorizar a estética negra por meio da escrita com a luz significava criar uma memória coletiva e social do povo negro. Posso afirmar que esse era um dos pilares que sustentava a sua visão sobre a fotografia e, durante os anos que estivemos juntos, essa mensagem me foi transmitida de diferentes formas. Como mestre, uma de suas primeiras lições foi ensinar que a fotografia era a nossa ferramenta usada para transformação social de raça, classe e gênero. Em uma delas, pediu que eu lesse dois textos: uma entrevista de Muniz Sodré na qual reflete sobre a não resolução do problema sociorracial do Brasil após a abolição e um texto sobre o racismo no feminismo e a necessidade de racializar o discurso de uma tradutora chamada Carol Correia.
No debate que se sucedeu a leitura, Janu me disse: “Maiara, o nosso compromisso é muito maior do que fazer boas fotos e exposições. Nós temos um compromisso com a memória do nosso povo e a possibilidade de mudar a perspectiva que as pessoas têm sobre elas e a vida”.
Em cada ângulo, enquadramento e composição, essa visão transformadora de Janu estava presente e com ela uma personalidade forte que não estava disposta a negociar seus valores. Ciente de sua função política e social enquanto negro fotógrafo, como ele fazia questão de dizer, buscou documentar os negros em diferentes espaços registrando a movimentação/mobilidade, as ações políticas e o processo da valorização da autoestima e da cultura negra.
A sua trajetória de vida e profissional me faz refletir sobre as coisas das quais ele teve que abrir mão para ser quem ele era e para garantir que nós, negros, tivéssemos uma memória materializada em imagens. Em muitas de nossas conversas ele demonstrou que mais importante do que viver os seus ¾ de século, como ele gostava de dizer foi apreender com cada situação vivida. A sabedoria obtida pela longa jornada neste mundo, a dignidade e a beleza do saber envelhecer o levavam a querer compartilhar cada vez mais o conhecimento. Não foi preciso muito tempo para me dar conta disso e quando me dei, aproveitei cada segundo construindo uma relação de amor puro e amizade que transcendia a fotografia. Assim ele me dizia: “De que adianta ser dono de um conhecimento ou do saber fotográfico, se eu não puder ensinar e compartilhar o que aprendi nessa vida?”
Quem conheceu Janu, como era/é carinhosamente chamado, sabe que a sua generosidade estava acima de qualquer questão, pois, ainda que você não fosse um amigo íntimo, ele estava disposto a te ajudar achar um caminho. Como amigo, não havia um assunto que ele não tivesse uma palavra de sabedoria e uma visita a sua casa que não tivesse uma refeição preparada por ele.
Como disse em outro artigo, a cozinha é lugar de afeto e nesse quesito a cozinha de Janu era repleta. Ah como terei saudades dessa parte! Confesso que essa era uma das melhores coisas de nossa relação (risos), mas não pense você que só ele cozinhava porque eu também levava alguns quitutes.
Já imaginou, aprender sobre fotografia com Januário Garcia e ainda ter o prazer de provar diferentes pratos que ele aprendeu a preparar ao redor do mundo?
Nas palavras de Janu: “Maiara, a fotografia me levou a lugares que eu jamais imaginei”. E toda vez que ele dizia isso, com risos dele e meu, eu respondia: “Que ela me leve também!”.
E não é que levou? Em 2018, tive a oportunidade de documentar o 20 de novembro no Quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, no estado de Alagoas.
A fotografia que acompanha este artigo foi feita enquanto ele contava como o Quilombo de Palmares resistiu por um século as invasões portuguesas e como a figura de Zumbi foi importante para o movimento negro articular politicamente e instituir legalmente o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
O Quilombo de Palmares, passou a reunir no dia 20 de novembro pessoas de diferentes classes sociais, movimentos políticos, etnias e crenças religiosas de todo o país. A Serra da Barriga foi reconhecida como solo sagrado, um espaço de resistência, liberdade e diversidade cultural. Essa articulação política protagonizada pelo movimento negro, assim como a subida da Serra da Barriga, é parte do acervo fotográfico documental denominado pelo próprio Januário, de Documenta Fotográfica Brasileira de Matrizes Africanas.
É interessante notar que muito mais do que transformar o outro e a sua perspectiva do mundo, a fotografia também transforma os fotógrafos. O ato de cozinhar diferentes pratos, as viagens para fotografar e expor em diferentes países, foram a prova de que o trabalho de Janu mostrou a cada brasileiro a realidade e a beleza de nosso cotidiano. E não para por aí, ele foi além das fronteiras… escreveu um livro chamado Diásporas Africanas na América do Sul – uma ponte sobre o atlântico com fotografias das manifestações culturais africanas de 7 países, com o antropólogo Júlio Tavares, expôs em países da África, da Europa, da América Central, do Oriente Médio, da América do Sul, da América do Norte.
Januário Garcia mostrou ao mundo a importância civilizatória das culturas africanas e através do seu olhar, das suas lentes, nos brindou com uma representação imagética que contempla a população negra em todo o mundo.
Como me disse um amigo leal: “Temos que agradecer por viver no mesmo tempo e espaço com alguém que dedicou sua vida a diminuir a dor do mundo por meio da escrita com a luz”.
Com a certeza de que somos fortes como os Baobás que fotografou, Janu retornou ao Orun nos deixando a missão de dar continuidade a um legado de luta, afeto e memória.
Até algum dia, meu mestre!
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