“A arte existe porque a vida não basta”. A frase do escritor maranhense José Ribamar Ferreira, o nosso Ferreira Gullar, que nos deixou há cinco anos, aos 86, é a síntese (ou a tradução) da busca da alma humana pelo intangível, pelo imaterial, pelo que, enfim, acrescenta essência aos nossos dias e à nossa existência, como complemento à vida.
Gullar foi, a partir do ofício de escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta, um dos fundadores do neoconcretismo, movimento dos anos 1950 que ia além do já vanguardista movimento concretista que pregava como expressão uma nova forma e conteúdo na escrita literária.
Mais de meio século depois, estamos, de novo, carentes de novas linguagens para voltarmos a nos entender, neste momento em que o mundo começa a retomar um ritmo de pretensa normalidade, depois da hecatombe pandêmica do Covid-19. Podemos testemunhar quão verdadeira é a frase de Gullar. Não fora pela arte catalisando a vida nas desalentadoras quarentenas, os estragos na saúde mental da humanidade seriam infinitamente maiores em todo o planeta. Quanto mais perto chegamos da convenção da outrora normalidade, mais necessitados nos revelamos com relação a esse alimento imaterial. “Produtos” que vêm a partir do que chamamos genericamente de cultura.
Aqui, quero propor uma nova linha de abordagem ao que vem pelo intangível, pelo que se traduz com os valores culturais passados de geração a geração e que constituem o patrimônio de um povo e que pode ser o ponto de partida para a geração de trabalho e renda.
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Na semana em que o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tornou patrimônio cultural brasileiro as “matrizes tradicionais do forró”, o nosso ritmo mais identitário da cultura nordestina, é quase uma obrigação cidadã propor em maior amplitude a elaboração e ampliação de políticas culturais de incentivo à economia da cultura.
E não apenas como uma compensatória aos prejuízos da pandemia, mas porque podemos resgatar um passivo histórico. Nós relegamos, historicamente, a abordagem efetiva dos ganhos econômicos advindos das ações culturais.
Não surpreende o que já fora constatado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que mais de 42% dos municípios brasileiros não teriam política municipal de cultura. Claro que, desde a certidão de batismo da economia com o livro “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, publicado em 1776, os muitos princípios econômicos fundamentais da época desconsideravam a riqueza gerada a partir da cultura, longe dos parques fabris tradicionais. Hoje é sabido, de forma inconteste, que economia é muito mais do que mercado.
Ela tem no seu núcleo, em seu epicentro, a sociedade e as pessoas e as relações estabelecidas entre elas.
Com essa premissa de que economia “é a ciência que estuda a produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços, assim como as condições para a produção, os modos de distribuição e as formas de consumo”, podemos entender a cultura de forma ampla, desde uma abordagem antropológica, com seus códigos de valores, inclusive os morais, além dos modos de conduta e as formas de expressão e de ver o mundo, até pelo enfoque da economia, com os bens, serviços e manifestações culturais que obedecem um fluxo completo de produção, distribuição e consumo.
Como bem definiu Luiz Carlos Prestes Filho, “os bens e serviços culturais que não circulam deixam de transmitir suas mensagens e seus valores”. E eu complemento que, em sendo assim, esses bens e serviços deixam de gerar riqueza, de impulsionar renda. Prestes alerta que “um músico que só toca em casa, um escritor que tem seu livro guardado, um artista visual que não expõe sua obra são, sim, criadores e produtores de bens culturais. Porém se não a distribuem, não a põem em circulação são obras que não concretizam seu potencial de consumo e sob o enfoque econômico, encerram um fluxo incompleto, encerram-se em si mesma”.
O Ipea (Instituto de Pesquisa Economica Aplicada) constatou que o percentual da população brasileira que nunca foi a um museu ou a um centro cultural chega a 70% e que mais da metade dos brasileiros nunca vão a cinemas.
E aí está o desafio que cabe aos gestores públicos: fomentar a produção, promover a difusão e facilitar que o maior número de pessoas tenham acesso a esses bens e serviços culturais. É assim que devemos pensar como fazer girar, num círculo virtuoso, a “roda da economia cultural”, afinal, os dados sempre indicaram mais de 320 mil empresas voltadas para a produção cultural no Brasil, gerando cerca de dois milhões de empregos formais, algo em torno de 5% dos postos de trabalho no País, e com salário médio mensal de 5,1 salários mínimos, o que é 47% superior à media nacional. Um quadro que requer políticas públicas mais ousadas e estruturantes.
No entendimento do Iphan, bens culturais de natureza imaterial estão relacionados às práticas e domínios da vida social “que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas que acontecem em lugares como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivos”.
A partir daí, precisamos pensar em ações concretas que continuem gerando o sentimento de identidade e continuidade, “contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”, como preconiza o Instituto.
Essa é uma questão de singular importância em um país como o Brasil, nação de um povo resiliente e inventivo.
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