Diante da decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de formular um projeto de lei que proíbe o exercício da advocacia de seus servidores, entidades que representam carreiras do TCU e os funcionários do Legislativo divulgaram uma nota conjunta defendendo a liberdade do exercício profissional. No texto (veja a íntegra mais abaixo), as instituições declaram que receberam com perplexidade a proposta apresentada na semana passada por Bruno Dantas, presidente do TCU. O projeto de lei apresentado por Bruno, a ser votado pelo Congresso, impede os servidores de exercerem a advocacia fora do TCU, além de proibi-los de integrar sociedades de advogados.
Esta é a segunda nota divulgada por servidores do TCU contra a medida. No fim da semana passada, a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) informou que não há justificativa para tal decisão, conforme publicou o Congresso em Foco.
Procurado pela reportagem, Bruno Dantas afirmou que as críticas da ANTC são fruto de “discurso corporativista”. “Li o ‘desagravo’ dos sindicatos mas, até o momento, não consegui compreender qual o ‘agravo’ sofrido pelos devotados e competentes servidores do TCU. Na verdade, o que macula a honra dos auditores federais de controle externo é o discurso corporativista raso que beneficia apenas uma minoria que usa o TCU como ‘bico’. Agora desejam convencer a sociedade de que o exercício da advocacia privada por servidores que têm acesso a informações privilegiadas e o poder de iniciar fiscalização contra terceiros é boa para a democracia e beneficia o cidadão que paga seus salários”, declarou o presidente.
Em comunicado divulgado nesse domingo (15), cinco entidades acusam Bruno Dantas de agir de maneira autocrática e de contrariar a Constituição ao restringir o livre exercício profissional. Segundo as associações, “não há, no exercício da advocacia privada, qualquer hipótese que justifique a União restringir o exercício desse ofício pelos servidores públicos cujas atribuições legais não tenham relação com a atividade privada ou de interesse particular, estes alcançados apenas pelo regular exercício do poder de polícia”.
Leia a nota na íntegra:
“As entidades signatárias desta Nota vêm a público expor o que se segue em relação à Comunicação da Presidência do Tribunal de Contas da União, submetida ao Plenário na sessão do dia 11 de setembro de 2024, com objetivo de encaminhar ao Congresso Nacional Projeto de Lei para vedar o livre exercício da advocacia privada por servidores do TCU.
- Preliminarmente, as entidades registram que receberam com perplexidade e assombro a proposta apresentada, cujo teor carece de reais motivos que justifiquem a medida desproporcionalmente restritiva;
- A indignação generalizada é justa e decorre do ineditismo da iniciativa concebida pela cúpula do TCU, que jamais tratou seus servidores efetivos – principal patrimônio da instituição centenária – com tamanho desprestígio e desconsideração, sem qualquer diálogo prévio com o grupo potencialmente afetado e suas entidades representativas. Aliás, deve-se registrar que a falta de diálogo tem sido um ponto marcante da atual Presidência, que adota medidas administrativas – por vezes polêmicas e alheias à lei de regência, a exemplo da inexplicável exclusão dos aposentados na regulamentação do AEQ – sem promover amplo debate com servidores da Casa;
- A respeito da forma autocrática de conduzir a instituição centenária, impõe fazer uma ampla reflexão interna e com a sociedade. Não se pode partir da premissa de que os autores da proposta legislativa estão absolutamente corretos em suas análises sobre a realidade, sobre eventuais problemas e sobre as soluções mais adequadas para resolvê-los. Adotar essa postura é ignorar toda uma compreensão não apenas filosófica, mas, sobretudo, prática da democracia e da construção de solução justa e plausível para a situação que se pretende resolver;
- Esse modelo de gestão também destoa da noção de democracia, ambiente em que a construção de qualquer solução – seja legislativa, seja administrativa ou judicial – ocorre a partir da promoção de debate franco, aberto e participativo, de modo que a solução final possa desfrutar da mais ampla legitimidade democrática e produzir os efeitos almejados em prol da instituição e do interesse público;
- A proposta legislativa, além de maculada pelo deficit de discussão democrática, apresenta deficiências jurídicas incompatíveis com a produção e o que se espera da mais Alta Corte de Contas do País, risco plenamente mitigável em propostas concebidas de forma participativa que marca os ambientes profissionais democráticos;
- O texto proposto pelo TCU não considera que o livre exercício profissional, que remonta à Constituição de 1824, é um direito individual e inviolável, sendo de extrema importância a sua compreensão histórica para entender os direitos e os limites constitucionalmente plausíveis;
- É inequívoco que a vedação, nos termos propostos pelo TCU, constitui clara ofensa ao direito fundamental à liberdade de exercício profissional assegurada pelo inciso XIII do art. 5º da Constituição de 1988, a qual só pode ser condicionada ao atendimento das “qualificações profissionais que a lei estabelecer”;
- Trata-se de direito fundamental para a consolidação de uma sociedade livre, justa e sem preconceito, propósitos enunciados no Preâmbulo da Constituição de 1988, que, apesar da função diretiva dos valores supremos, são reafirmados, de forma expressa, nos fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil – RFB;
- É certo que a limitação à liberdade do exercício profissional está sujeita à reserva legal qualificada, sendo necessária, além da previsão em lei expressa, a realização de um juízo de valor a respeito da razoabilidade e da proporcionalidade das restrições impostas e do núcleo essencial das atividades regulamentadas, premissas desconsideradas pelo TCU ao aprovar o encaminhamento da restrição proposta;
- A proposta também não considera que a intervenção do Estado na escolha da profissão somente é cabível com o propósito de proteger o interesse público, desde que demonstrado que o seu exercício apresenta riscos a terceiros. Ignora ser inadmissível, em um Estado de Direito, o poder estatal estabelecer restrições à profissão de forma desmedida e sem justificativa plausível;
- Não há, no exercício da advocacia privada, qualquer hipótese que justifique a União restringir o exercício desse ofício pelos servidores públicos cujas atribuições legais não tenham relação com a atividade privada ou de interesse particular, estes alcançados apenas pelo regular exercício do poder de polícia;
- Neste ponto, impende observar que as competências constitucionais do TCU não se amoldam ao alcance do poder de polícia, cujo fundamento é a supremacia geral exercida pelo Estado sobre pessoas, bens e atividades em razão da predominância do interesse público sobre o particular (RE nº 190985, Rel. Min. Neri da Silveira; MS nº 32.201, Rel. Min. Luís Roberto Barroso). Esse não é, nem de longe, o escopo da missão constitucional do TCU definida no art. 71 da Lei Maior, que tem como foco assegurar a correta aplicação de recursos públicos por gestores e demais administradores de recursos da União;
- À luz dessa premissa, é oportuno reafirmar não ser competência de nenhum servidor do TCU realizar, no exercício das respectivas funções, atividades afetas a interesses privados, dado que a competência constitucional do TCU se limita ao interesse da União;
- Para os casos mencionados, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, no seu art. 30, impede o exercício da advocacia pelos “servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora” (I), no que inclui os servidores do TCU;
- Assim sendo, eventual transgressão dessa regra é facilmente constatada pela Advocacia-Geral da União, necessária representante da União na defesa de seus interesses, a qual possui acesso às informações de todos os Advogados atuantes em processos judiciais e extrajudiciais. Verificado o descumprimento da restrição estatutária, caminho certo é a denúncia da AGU à OAB e à Corregedoria do TCU para as devidas providências;
- Oportuno também esclarecer que, no exercício das funções administrativas e até mesmo das funções típicas de controle externo, não há risco adicional de um servidor do TCU interferir ou induzir a decisão do Magistrado do Poder Judiciário, do membro do Ministério Público ou da Defensoria Pública tal como ocorre com os servidores dos serviços auxiliares dos órgãos que corporificam as funções essenciais à Justiça. Isso porque estes servidores têm acesso direto a Magistrados, Procuradores e Defensores responsáveis pela condução de ações que afetam interesses privados e entre particulares (divórcio, pensão alimentícia, etc), razão pela qual demonstra-se razoável e proporcional a restrição ao exercício da advocacia privada imposta a tais servidores, de modo a garantir a imparcialidade e a paridade de armas no exercício da advocacia;
- Os servidores do TCU, no exercício da advocacia de interesses privados perante a Justiça, se equiparam a quaisquer outros servidores públicos cujas atribuições legais não tenham alcance sobre particulares e interesses privados;
- Nesse sentido, também se revela desprovida de lógica e plausibilidade jurídica eventual ideia que vise estabelecer pseudo-similitude entre os servidores do quadro próprio do TCU e os servidores dos serviços auxiliares dos órgãos do Poder Judiciário, na tentativa de aplicar, análoga e inadvertidamente, a restrição por incompatibilidade de que trata o art. 28, inciso IV do Estatuto da OAB, eis que as competências do TCU não se equivalem às funções essenciais à Justiça;
- A proposta, que visa restringir a obtenção de registro no Conselho Profissional, também produzirá o efeito negativo de desestimular a busca pela formação jurídica por parte dos servidores do TCU, com impacto danoso sobre a política de gestão que não contribui para a eficiência necessária para lidar com os desafios do Direito Público;
- Embora não seja requisito legal para ingresso em nenhum dos cargos do quadro próprio do TCU, é inequívoco que o registro profissional no Conselho competente – sujeito à avaliação da qualidade do ensino – contribui para a qualificação profissional na área jurídica e o desempenho da função de controle externo a cargo do TCU, cujas competências afetam, direta e substancialmente, direitos subjetivos dos jurisdicionados em matéria de interesse da União.
À luz desses fundamentos, as entidades signatárias consideram que o projeto anunciado pelo TCU resulta de um prejulgamento infundado, que resvala em inaceitável discriminação em relação a um grupo qualificado de servidores da Corte Centenária.
Nesse sentido, a ideia de restringir o livre exercício profissional dos servidores do TCU, com formação jurídica e aprovação no Exame da Ordem, além de ostentar deficiências jurídico-constitucionais, também atenta contra princípios da República Federativa do Brasil, a qual tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV), sobressaindo dos objetivos fundamentais o repúdio veemente a quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV), no que se insere a inaceitável discriminação ao livre exercício profissional por um grupo de servidores do TCU.
O ponto central da justificação do Projeto de Lei está pautado em inexistente conflito de interesses, conceito este tão caro àqueles que lutam por um serviço público transparente e imparcial, alinhado aos anseios da sociedade. Portanto, o assunto é de amplo interesse público e dos servidores do TCU, aqui representados pelas entidades signatárias desta Nota.
Diante disso, é oportuno ressaltar que, se o Tribunal vislumbra a necessidade de provocar o Congresso Nacional para aperfeiçoar a legislação com vistas a prevenir conflito de interesses na esfera de controle externo, a proposta não deveria se voltar para restringir o livre exercício profissional na área jurídica, que se encontra devida e suficientemente disciplinado no Estatuto da OAB, cuja ação fiscalizatória sobre os inscritos contribui para prevenir e coibir eventuais desvios de conduta no exercício da profissão.
Esse tema do conflito de interesses merece, sim, uma ampla e urgente discussão sobre outras situações que representam elevado risco de influência imprópria no processo decisório dos Tribunais de Contas, a qual por vezes lhes retira a prevalência de aspectos técnicos e distancia a atuação das Cortes de Contas brasileiras dos padrões éticos nacionais e internacionais.
Diante de todo exposto, as entidades signatárias rogam para que o TCU reconsidere o encaminhamento da proposta, na oportunidade em que declaram aos filiados e associados o compromisso de atuarem em união de esforços, em todas as instâncias legítimas, para garantir o direito fundamental ao livre exercício da profissão nos termos assegurados pela Constituição de 1988 e assentados na jurisprudência da Corte Suprema
Associação Nacional dos Servidores Aposentados e Pensionistas do Tribunal de Contas da União – AsapTCU
Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União – Sindilegis
União dos Auditores Federais de Controle Externo do Tribunal de Contas da União – Auditar
Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União – AudTCU
Associação dos Servidores do Tribunal de Contas da União – ASTCU”
“.
Deixe um comentário