Está muito longe de ter sido um voluntarismo – ou, mais do que isso, um tropeço – de Índio da Costa, o candidato a vice-presidente na chapa de José Serra, a fala que envolveu o PT com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e, em consequência disso, com o narcotráfico. É até possível que seja verdade, como afirma a cúpula da campanha, que Índio tenha dito o que disse sem ter combinado previamente. Mas a discussão sobre como eventualmente atacar o PT a respeito disso já havia. E havia uma reflexão mais profunda sobre isso.
Um ensaio desse discurso já havia sido feito em maio pelo próprio Serra, quando do nada, resolveu trazer a Bolívia para o debate político brasileiro. Na ocasião, ele acusou o governo boliviano de ser “cúmplice” do narcotráfico. Por que Serra disse isso? Quantos votos ele esperava conquistar com essa fala?
A frase de Índio agora aclara um pouco mais as coisas. Há hoje, na América do Sul, uma divisão clara quanto à postura de alinhamento na política externa que deve ser tomada. Alguns países alinhados aos Estados Unidos, e outros, tendo Hugo Chávez na Venezuela como protagonista, pregando um confronto a esse alinhamento. O Brasil de Lula fica num meio-termo entre as duas coisas. Não rompe inteiramente com os Estados Unidos, mas busca intensificar contatos com outros parceiros no mundo. Com isso, muitas vezes até assumiu um interessante papel de mediador em conflitos. Nessa posição, porém, sofre pressões dos dois lados. O que interessa a Serra nessa história é empurrar Lula, seu governo e Dilma o mais perto possível para o lado de Chávez e Evo Morales. E apostar na maioria conservadora brasileira para tratar tudo isso como sinônimo de bagunça, instabilidade, confusão.
A tática não é nenhuma novidade. E o PT nem pode dizer que não a conheça nem nunca a tenha utilizado. Consiste em partir de pequenas verdades para fazer aflorar, por aí, temores latentes na sociedade. Em 2006, Geraldo Alckmin, do PSDB, foi vítima disso. Na virada do primeiro para o segundo turno, o PT passou a repetir que Alckmin privatizaria – ou, mais do que isso, entregaria a preço de banana – patrimônios caros ao povo brasileiro, como o Banco do Brasil e a Petrobras. É claro que Alckmin e o setor que o apoiava tinham uma visão mais privatista da sociedade que a do PT e seus parceiros, mas nunca lhes passou pela cabeça entregar o Banco do Brasil e a Petrobras à iniciativa privada. Desestabilizado por isso, sem conseguir criar a reação necessária, Alckmin acabou cometendo a proeza de ter no segundo turno menos votos do que tivera no primeiro.
Agora, são o PSDB e o DEM que partem de pequenas verdades para tentarem, por aí, amplificar temores de uma sociedade que é, em sua maioria, conservadora. Ainda há setores do PT, mesmo que minoritários, que defendem a chegada ao socialismo pela via revolucionária. Há outros setores, nem tão minoritários assim, que não defendem esse caminho para o Brasil – e até o rejeitam hoje de forma veemente –, mas admitem que ele possa ser uma opção válida para outros países, que vivem outras condições políticas. São notórias as ligações entre muitos petistas e Cuba, por exemplo. E é notória também a existência de um relacionamento entre membros do PT e as Farc. Há diálogo e ligações. E as Farc optaram em ter o narcotráfico como mecanismo de financiamento. Esses são os fatos.
Daí a dizer, porém, que o PT queira implantar solução revolucionária semelhante no Brasil, ou que tenha, por possuir ligações com as Farc, vínculos com o narcotráfico, vai uma diferença imensa. Daí porque a frase inicial de Índio não foi depois negada completamente por Serra ou outros integrantes da cúpula da campanha, mas lapidada. Algo que ficou assim, nas frases de Serra e seus companheiros de campanha: “O PT não tem ligações com o narcotráfico, mas tem ligações com as Farc, que têm ligações com o narcotráfico”.
O que há de tática eleitoral nisso é que os estrategistas da campanha de Serra perceberam que as políticas sociais do governo fizeram com que uma parcela mais conservadora da população começasse a migrar para Dilma. Para entender um pouco isso, é importante voltar ao excelente artigo de André Singer, tentando entender as raízes do “lulismo”, que já foi tema desta coluna. Singer diz que as políticas sociais introduzidas por Lula trouxeram para o cenário político uma parcela da sociedade que ele chama de “subproletariado”. Trata-se, segundo ele, de uma camada politicamente desorganizada, simpática a mudanças sociais (que, na verdade, terão eles próprios como principais beneficiários), mas avessa a ideias revolucionárias. Antes da inflexão para o centro feita por Lula em 2002, esse grupo rejeitava o PT, porque vinculava o partido a coisas como greves, passeatas, manifestações que, no imaginário deles, eram sinônimos de “bagunça”. Em 2002, uma parte ainda continuou rejeitando Lula e o PT. Mas, após assumir o governo, Lula conquistou de vez essa parcela do eleitorado.
O que Singer observa é que foi em Lula, e não no PT, que essa parcela colou. Daí a criação, segundo ele, do “lulismo”. Esse eleitorado enxerga em Lula legítimas preocupações sociais, mas sem o viés esquerdista que acham que o PT ainda pode ter. O que Serra e Índio buscam fazer, portanto, é convencer o eleitor mais conservador que, sem Lula, o PT não governará da mesma forma. Poderá, pelas suas relações e ideias, levar o país a uma situação desestabilizadora, a uma “bagunça”.
Mesmo com toda a sua popularidade, os números sempre deixam claro que há ainda uma resistência forte de uma parcela do eleitorado ao PT. Mesmo contra Alckmin, que estava longe de ser um bom candidato, Lula, com toda a sua popularidade, teve de enfrentar um segundo turno. O que os estrategistas de Serra queriam era criar um bochicho que provocasse uma desestabilização, de modo a evitar que Dilma ultrapassasse o tucano e, pior, se descolasse dele. As pesquisas mostravam que havia uma tendência de isso vir a acontecer.
Se a historinha iniciada por Índio tiver dado o resultado esperado, a tendência é que novos ataques violentos como esse não se repitam agora. A eleição ainda está relativamente longe, e a pancadaria poderia vitimizar a candidata petista. Lá adiante, porém, novas pancadas deverão acontecer. E Índio pode de novo ocupar esse papel de francoatirador. Enfim, Índio tem apito. Se der, pau vai comer.
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