Nesta última semana tivemos duas novas incursões. Em Hong Kong, a proibição de se cantar uma determinada versão do “Hino Nacional”. O governo chinês ditou a verdade oficial. No Brasil, a inclusão de conteúdos sobre o racismo nas salas de aula foi objeto de reportagens na imprensa. O tema e sua forma de condução exigem que se levante o debate sobre a questão. E, como sempre, antes que seja tarde. Ou tarde demais.
Ao longo da história são inúmeras as tentativas de estabelecer “A” verdade oficial: O Ministério da Propaganda do Nazismo; o Galvlit da União Soviética; o “Grande Firewall” da China; e a mídia estatal da Coréia do Norte são alguns exemplos contemporâneos. A literatura nunca se omitiu desse debate: são testemunhos disso, entre outros, o 1984, de George Orwell; o Admirável Mundo Novo, de Huxley; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; O Conto de Aia, de Margaret Atwood, sobre a teocracia totalitária que suprime os direitos das mulheres; ou a novela gráfica V de Vingança, de Alan Moore. Verdade e liberdade sempre andaram de mãos juntas, seja como ideais, seja como vítimas de perseguição e supressão.
Tudo começa com boas intenções. Há um problema? Vamos aprovar uma lei para lidar com ele. No caso trata-se da lei que “obriga” as escolas a tratar do “racismo estrutural”. A tese subjacente é a de que o racismo estrutural precisa ser combatido. E a premissa do racismo estrutural é a de que é a própria estrutura social discrimina os negros, mesmo que nenhum indivíduo seja racista. Portanto, todos precisam ser “educados”.
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Aqui começam os problemas, e dois deles são incontornáveis. O primeiro se refere à própria tese do racismo estrutural. Essa é uma daquelas proposições que os filósofos da ciência consideram como “irrefutáveis”, ou seja, que não é possível provar se são certas ou erradas. Sempre haverá diferenças associadas a conceitos como raça ou etnia, qualquer que seja a definição dos termos. E sempre se poderá, portanto, atribuir essas diferenças ao racismo estrutural. É o eterno problema do ovo e da galinha. Essa é uma questão insolúvel com os recursos da argumentação lógica e, portanto, situa-se fora do âmbito da ciência. O outro problema é o de como lidar com a ideia de que as pessoas precisam se informar adequadamente sobre as questões raciais que envolvem os negros – na expectativa de que isso levaria a uma mudança de atitude.
Comecemos do começo e vamos logo às questões práticas. O problema do racismo existe e é grave entre nós, especialmente do racismo e do preconceito em relação aos negros. Apesar de sua complexidade e do terreno de areia movediça em que se dá o debate, é questão presente que precisa ser discutida e enfrentada como tantas outras. E é certamente uma questão que pode e deve ser discutida também nas escolas. Mas por envolver temas complexos, precisa ser abordada com cautela e, sobretudo, a partir de diferentes perspectivas e com base em fundamentos das diferentes ciências que lidam com os diferentes aspectos da questão. E, como tudo começa pelo princípio, tudo deve começar pelo exame dos dados e sua correta interpretação e uso.
Na última versão da PNAD Contínua de 2022 podemos observar como os brasileiros respondem à questão da cor, o IBGE usa a palavra “etnia”. O questionário pergunta como o indivíduo se autodeclara. As opções são branco, preto, amarelo, pardo, indígena e não declarado. O quadro “Distribuição étnica da população brasileira” organiza as respostas para o Brasil como um todo e o Nordeste em particular.
Esses dados constituem um bom ponto de partida para estabelecer um debate sobre o tema e procurar uma definição ou um vocabulário comum. Afinal, do que exatamente estamos falando? A questão racial está longe de ser uma questão de branco no preto ou preto no branco. Ela comporta inúmeras variações, sutilezas e matizes. As mesmas pessoas respondem diferentemente ao Censo e à inscrição no vestibular, por exemplo. As variações regionais sob a própria percepção da questão e suas implicações são enormes. E dentro das regiões são maiores ainda - por exemplo, as diferenças entre autodeclarados brancos em Pernambuco e Rio Grande do Norte é metade do que se encontra no Maranhão e Piauí. As realidades diferem, mas a percepção deles difere ainda mais.
O próprio conceito de etnia que vem sendo usado está longe de ser objeto de uma definição sem ambiguidades, e encontra-se longe de um consenso entre os cientistas e as diferentes ciências que se ocupam do tema. Nada disso é para fugir do problema, apenas para ressaltar a complexidade e o cuidado com que o debate deve ser engajado.
Uma outra possível âncora para o debate são as pesquisas sobre DNA, que jogam por terra os antigos conceitos de raça e mostram a extensão em que a maioria dos brasileiros são portadores de marcas genéticas dos negros e indígenas. #nãosomostodosnegros, mas a maioria de nós compartilha esses genes. Mas é preciso cautela com isso também. As respostas ao Censo do IBGE e à PNAD mostram que a percepção das aparências é tão ou mais importante do que a genética poderia sugerir...
Feito o alerta, vamos aos fatos. Primeiro, temos uma lei que obriga a discussão desses tópicos na escola. Aí já começa o problema. Seria adequado estabelecer leis para discutir esse e tantos outros temas em sala de aula? Seria essa a melhor forma de promover o debate e a causa da discriminação? E mais, seria adequado, como se propõe, discutir o tema fora do contexto das diferentes disciplinas, ao invés de abordá-lo com base dentro das mesmas, com base em fundamentos e referentes minimamente referenciados a um conceito ou contexto e nas mãos de professores que estariam mais bem preparados para isso? Dificilmente algo que começa errado pode dar certo. Há um vício de origem, e fica o alerta para o legislador.
Segundo: alguns estados, conforme a imprensa divulgou nessa última semana, começam a criar “comissões da verdade” para elaborar materiais didáticos a serem discutidos nas escolas. Lembram-se da “Cartilha do Mao” na China? Portanto, teremos não apenas a recomendação ou obrigação legal de discutir o tema, mas uma proposta ou “verdade oficial” a ser discutida. E essa verdade, pelo que foi noticiado, está sendo elaborada por determinados grupos e indivíduos pré-selecionados por sua história de lutas, não necessariamente indivíduos com raciocínio independente que estimulariam os alunos a refletir de maneira independente sobre o mesmo. Isso é muito diferente de um livro ou material didático assinado por um autor que assume a responsabilidade pelo que diz. Ou de um foro que apresenta diferentes ideias e abre espaço para o debate e, onde couber, o exercício do contraditório.
Ademais, esse tema em particular sempre foi difícil de se discutir e hoje se tornou ainda mais difícil, tendo em vista a polarização, os estigmas e o patrulhamento da linguagem que, em que pese a suas boas intenções, dificulta ou frequentemente impossibilita a comunicação. Se examinarmos os resultados médios dos alunos da escola pública brasileira no Pisa, veremos que seu nível de compreensão de leitura e interpretação de textos situa-se no nível 2 ou abaixo daquele teste. Ou seja, sua capacidade de ler e interpretar textos não lhes permite compreender e argumentar de maneira minimamente adequada sobre nenhum assunto. Monopolizar o discurso e os temas não parece ser um bom ponto de partida. E tirar o tema da mão dos professores das várias disciplinas para colocá-lo... em que mãos? Parece uma temeridade.
Diferenças sociais – como diferenças individuais de natureza física e psicológica - são temas importantes e não podem ser evitados. Eles devem ser naturalmente parte de qualquer currículo de qualidade – ainda que não estejam todos previsíveis ou prescritos na legislação. Devem ser parte natural dos currículos das diferentes disciplinas. Há tópicos, momentos e abordagens que são naturalmente adequados ou que podem ser aproveitados de maneira mais adequada para serem abordados, especialmente em aulas de literatura, ciências, geografia e história, dando espaço aos diferentes ângulos e, onde adequado, diferentes interpretações e pontos de vista.
Também há uma questão de método e abordagem. Um estudo publicado na Harvard Business Review de julho-agosto de 2016 (pp. 4-10) mostra a ineficácia de programas de educação ou treinamento para lidar com questões dessa natureza. Há muitas outras maneiras eficazes para criar um ambiente, fazer avançar o debate e promover ações práticas sobre temas e situações de discriminação tão odiosas como o racismo e o preconceito.
O que faz avançar o debate é o contraponto de ideias. O que pode ajudar a mudar o comportamento é a exposição do aluno – e das pessoas em geral - a situações concretas para lidar com essas questões. Como sempre, de boas intenções o inferno está cheio. Tal como formulada e tal como vem sendo concebida essa é mais uma iniciativa potencialmente fadada a criar mais problemas do que ajudar a resolvê-los. E mais uma lição de que – como dizia Shakeaspeare – de boas intenções o inferno está cheio. Na verdade, o original dizia algo como “Aquele (o rei Lear) que tinha a melhor das intenções incorreu na pior das decisões”. Não se muda a sociedade por decreto – ou leis. Mas leis mal pensadas e mal refletidas podem torná-la pior. E mais polarizada.
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