Nos últimos tempos algumas pessoas menos apaixonadas manifestaram-se sobre a necessidade de uma direita “responsável”, “equilibrada”, “democrática”, “moderada”, entre outros termos. O bolsonarismo as impelia a esses qualificativos. No espaço em que há de existir o programa da direita, digladiam-se, na prática ou apenas em tese, duas propostas diversas.
Com a queda do muro de Berlim e o fim do “socialismo real”, Norberto Bobbio, um dos mais brilhantes e admiráveis pensadores políticos, acertou as contas com a dicotomia direita-esquerda em sua obra “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política”.
Bobbio distingue a centro-direita, que é “simultaneamente libertária e inigualitária”, e a extrema-direita, por sua vez “antiliberal e anti-igualitária”. Ambas as perspectivas comungam da ideia de que a desigualdade dos seres humanos é um fato natural da vida, sendo a desigualdade social apenas uma decorrência aceitável. A parte inigualitária-anti-igualitária que ambas as vertentes legitimam expressa-se no credo do mercado. Contudo, a centro-direita defende a liberdade, enquanto a extrema-direita é autoritária.
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A liberdade lançou suas raízes com firmeza no século 17, quando a obra de John Locke e a configuração política da sua Inglaterra conformaram as ideias de direitos individuais inalienáveis: a tolerância religiosa, a liberdade de credo e de opinião. Diferenças, eis o ponto que a sociedade política deveria aceitar. Uma relativa paz social, na esteira de mais de um século de guerras civis religiosas e políticas, seria o fruto valioso a ser colhido. Como afirmou Hannah Arendt séculos depois, política é o convívio dos diferentes.
Alguns estudiosos apontam que o período da década de 1980 até a ascensão da extrema-direita consistiu em um “neoliberalismo progressista”, isto é, a primazia do mercado conjugada à garantia dos direitos de autoexpressão política, cultural, social de grupos antes marginalizados – explosão das questões identitárias lado a lado com a intocabilidade das regras econômicas capitalistas. Tivemos um domínio da centro-direita, nos termos de Bobbio.
Hoje o bolsonarismo engolfou infelizmente todos aqueles que criticam o pensamento de esquerda. A extrema-direita apresenta como projeto de futuro o recrudescimento das políticas pró-mercado, mas agora conjugado a um projeto de monopólio de valores conservadores, nossa famosa e funesta síntese “liberal na economia, conservador nos costumes”. O bolsonarismo é a antítese da liberdade, é a proposta de um país cada vez mais desigual economicamente e opressivo quanto aos direitos de autoexpressão política, cultural, social. A extrema-direita não bebeu do Iluminismo, ainda crê numa sociedade selvagem e bruta onde apenas os mais fortes – e iguais ao grupo dominante – sobrevivem.
PublicidadeA partir do momento em que direitos individuais e liberdade – inscritos na Constituição Federal de 1988 – começaram a frutificar permitindo a luta antirracista, espaço para o grupo LGBTQIA+, o protagonismo dos povos indígenas, a reação deu-se como uma negação da liberdade de fato em nome de uma liberdade seletiva, expressão real de um monopólio de valores e interesses conservadores. Incautos que imaginam o bolsonarismo como defensor da liberdade incorrem em erro grotesco, pois apoiam uma ideologia estreita, excludente e violenta. Liberais de verdade apoiariam tais liberdades e minorias e refutariam o bolsonarismo. O neoliberalismo progressista desfez-se, abatido pelas crises econômicas e pela resposta política brutal dos extremistas.
Assim, a necessidade e oportunidade para uma direita não extrema, uma centro-direita como definiu Bobbio, é urgente. O tamanho e a intensidade da desigualdade exigem que qualquer direita acerte as contas com seu credo no mercado (altamente recomendável a leitura de Thomas Piketty por aqueles desejosos de conhecer a amplitude e profundidade da desigualdade e seus efeitos políticos). Na dimensão política, postar-se em defesa da liberdade verdadeira e universal diferenciaria uma nova direita, confrontar o elemento autoritário no bolsonarismo. Defender a liberdade é defender o outro, o diferente.
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