por Ivan Carneiro Castanheiro* e Soraya Gomes Cardim**
Recentemente, muitos consumidores, beneficiários de planos de saúde, tiveram seus contratos cancelados junto às respectivas operadoras, de forma unilateral. A medida foi alvo de inúmeras ações judiciais. Houve ainda notícias de que em 05/06/25 será protocolado na Câmara dos Deputados um pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para a investigação dos cancelamentos, de forma unilateral, de planos de saúde, principalmente de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), doenças raras e paralisia cerebral, o qual contaria com assinaturas de quase 300 deputados.
Inicialmente, é fundamental compreender que o direito à saúde é assegurado pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo 196, como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.
Ainda, no contexto do sistema constitucional brasileiro, a assistência à saúde é atribuída ao Estado quanto à forma preventiva, dividindo-se responsabilidade entre o setor público e o privado quanto à atuação curativa. Não atuando diretamente, cabe ao poder público regulamentar, controlar e fiscalizar as atividades desenvolvidas por particulares nesse setor, quer sejam pessoas físicas ou jurídicas, uma vez que se trata de serviço de relevância pública.
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Este cenário desencadeia uma série de implicações legais e práticas, uma vez que coloca em questão a efetividade dos direitos básicos do consumidor, previstos no Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente no que tange à adequada prestação dos serviços de saúde. A questão central é se, e em que medida, os planos e seguros de saúde podem cancelar ou mesmo limitar a cobertura, considerando o princípio da integralidade da assistência à saúde, garantido pela Constituição Federal e pelas normas infraconstitucionais que regulamentam o setor de saúde suplementar.
Como já mencionado em artigo anterior que publicamos sobre o mesmo tema no jornal Estado de São Paulo (leia aqui), os contratos de planos de saúde, atualmente regidos pela Lei nº 9.656/98, representam acordos de longa duração entre fornecedores e consumidores. Essa relação, transformada em um cenário de prestação de serviços, coloca em destaque a obrigação das operadoras de serviços privados de saúde de prestarem um serviço com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, nos exatos termos do art. 4º, II, “d”, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A aplicabilidade do código consumerista aos planos de saúde vem sendo reconhecida por nossos tribunais (leia na Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça), inclusive com condenações por práticas abusivas, garantindo a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, sejam eles de natureza financeira, física ou moral, resultantes de irregularidades no atendimento.
A situação jurídica em questão é complexa e polêmica, envolvendo a discussão acerca da obrigatoriedade de cobertura integral por parte dos planos e seguros de saúde aos seus consumidores. A complexidade deste tema reside não apenas na interpretação das normas legais vigentes, mas também na operacionalização de tais obrigações na prática, bem como e, principalmente, quanto aos custos dessa integral assistência médica de caráter privado, com ou sem repasse aos usuários desses planos.
Frequentemente, consumidores de planos de saúde se deparam com a negativa de cobertura para determinados procedimentos ou tratamentos, sob a alegação de não estarem previstos no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou, ainda, de serem considerados experimentais. Diante dessa negativa, muitos acabam por se socorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) em busca do tratamento necessário. Quando não, utilizam-se do Poder Judiciário, em demandas de longa e desgastantes duração, para a obtenção do tratamento/procedimento negado pelo plano de saúde, sendo frequentemente atendidos em seus pleitos, com implicação de custos aos segurados, sem prévia inclusão nos cálculos atuariais.
Diante das dificuldades rotineiramente enfrentadas pelos consumidores/usuários de planos e seguros de saúde privados, cabe à ANS, criada pela Lei nº 9.961, de 2000, que tem com uma de suas principais atribuições a regulação das operadoras de planos de saúde, incluindo a definição de um rol mínimo de procedimentos e eventos em saúde que devem ser obrigatoriamente cobertos, assegurar o equilíbrio e as soluções que conciliem a sustentabilidade financeira dos planos de saúde com a garantia de direitos fundamentais dos consumidores, em conformidade com a sua regulamentação.
Nesse sentido, a Lei nº 9.656, de 1998, que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelece em seu artigo 10 as exclusões de cobertura permitidas, mas também determina, especialmente em seu artigo 12, as condições básicas para a sua efetivação, garantindo uma ampla proteção ao consumidor.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), também é uma ferramenta fundamental nessa análise, uma vez que os contratos de planos de saúde são considerados relações de consumo. O CDC estabelece, entre outros princípios, o da boa-fé objetiva (art. 4º, III) e o da proteção contra a publicidade enganosa e abusiva e práticas comerciais coercitivas ou desleais (art. 6º, IV).
A jurisprudência dos tribunais superiores tem reforçado a interpretação de que os planos de saúde não podem recusar cobertura a procedimentos prescritos por profissional habilitado, especialmente quando não há substituto terapêutico, com base no rol de procedimentos da ANS, que deve ser interpretado de maneira exemplificativa e não taxativa. Este entendimento busca assegurar a efetividade do direito à saúde e à vida.
Para a efetiva obrigatoriedade de cobertura integral por parte dos planos e seguros de saúde, faz-se imprescindível a análise da Resolução Normativa nº 465, de 2015, da ANS, a qual estabelece o rol de procedimentos e eventos em saúde que devem ser cobertos pelos planos e seguros de saúde. Esta resolução é crucial para a compreensão dinâmica da cobertura obrigatória, uma vez que estabelece os tratamentos, procedimentos e exames que as operadoras de planos de saúde devem cobrir.
Entretanto, tal resolução também prevê mecanismos de atualização do rol, permitindo a inclusão de novos tratamentos e procedimentos com base em evidências científicas e análise de custo-efetividade. Esse mecanismo de atualização, o qual vem sendo usado ao longo do tempo, é fundamental para garantir que os consumidores tenham acesso às inovações terapêuticas e tecnológicas na área da saúde.
Com o surgimento de novas doenças e evolução da medicina, qualquer lei que se queira editar para regular as relações jurídicas decorrentes de planos de saúde tende a ficar rapidamente obsoleta, ainda que contenha uma completa e exaustiva enumeração de procedimentos médicos a serem cobertos pelos planos privados de assistência à saúde. Essa enumeração taxativa traria, por consequência, um enrijecimento das relações de consumo, de maneira a aprisionar o consumidor e deixá-lo vulnerável em sua saúde e qualidade de vida.
O desafio, nesse contexto, é o custeio dessa assistência médica integral pelos prestadores privados dos serviços de saúde. A problemática surge em um contexto no qual, por diversas razões, pacientes atendidos inicialmente por instituições privadas de saúde são transferidos para o sistema público, ou vice-versa, gerando questionamentos sobre a responsabilidade pelos custos gerados. Esse “jogo de empurra” deixa em pânico o paciente, o qual terá que suportar não somente as naturais agruras físicas decorrente do infortúnio de saúde, mas também as agruras morais decorrentes da incerteza quanto ao atendimento, qualidade e morosidade que nele se vislumbra, gerando riscos irreversíveis para sua saúde e até para sua vida, em patente ofensa a seus direitos constitucionais e infralegais, em especial à dignidade da pessoa humana.
Esta situação não apenas reflete a dinâmica entre os sistemas de saúde público e privado, mas também levanta questões importantes sobre os limites da responsabilidade financeira desses agentes de saúde, em um cenário onde os recursos são limitados e a necessidade de atendimento é crescente.
Não se pode olvidar que dentre os princípios vigentes nas relações jurídico-econômicas estão a aplicabilidade no mercado de consumo da norma mais favorável ao consumidor; segurança, educação para o consumo (direito à informação); proteção contratual; indenização; meio ambiente saudável; adequação dos serviços públicos. O Interesse das operadoras é mais a obtenção de lucro do que o bem-estar e saúde do paciente, o que é tradicional no sistema capitalista, mas precisa ser coibido pelo poder público. Este pode e deve intervir sempre que houver abuso, visando a defesa do consumidor e dignidade da pessoa humana. A ordem econômica também deve obediência à dignidade da pessoa humana, à solidariedade e aos direitos fundamentais como um todo, conforme previsto no art. 170 da Carta Magna, que é Constituição cidadã e social, não tendo como dogma máximo a autonomia da vontade ou a livre iniciativa, ou seja, nela não vigora o liberalismo puro.
Certa feita (fonte aqui) consignamos: “O não atendimento a procedimentos de alta complexidade, pelas operadoras de planos e seguro-saúde compromete os direitos constitucionais do consumidor/paciente, como o direito à vida (artigo 5º, “caput”), à saúde (artigo 6º), à sadia qualidade de vida (artigo 225, “caput”) e, principalmente, à dignidade, fundamento da República (artigo 1º, III) e princípio da ordem econômica (artigo 170, “caput”). Com essa negativa deixa a empresa de cumprir com os ditames da justiça social (artigo 170, “caput”) e função social da propriedade (artigo 170, III)”.
Pelo art. 22 da Lei nº 8.080/90, aplicam-se aos serviços privados de assistência à saúde os mesmos princípios jurídicos e éticos dos serviços públicos de saúde, razões pelas quais devem ser exigidos dos planos privados de assistência à saúde atendimento integral e de qualidade a seus consumidores. Assim, não são lícitas restrições na cobertura de doenças.
O conflito entre valores das contraprestações e a amplitude de cobertura/qualidade dos serviços a serem prestados formam uma difícil equação, diante da inadmissível recusa a serviços de saúde suplementar. Essa indispensabilidade dos serviços privados decorre do, em geral, precário serviço público de saúde ofertado. Por outro lado, os serviços de saúde privados devem ser prestados por parte das operadoras de planos de saúde com segurança e qualidade (artigo 4º, II, “d”, do CDC), visando manter as legítimas expectativas do consumidor e sua dignidade (artigos 1º, III e 170, “caput” da CF e artigo 4º, “caput” do CDC).
Entretanto, “Para sobrevivência dos planos privados de assistência à saúde, o que é de interesse de consumidores e operadoras, face à baixa qualidade da maioria das ações de saúde e insuficiência dos serviços públicos de saúde, indispensável a existência de equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Deve-se evitar uma insuficiência no valor da prestação individual, a qual levaria à insolvência as operadoras de plano de saúde. Entretanto, também não podem as operadoras cobrar valores excessivos, sob pena de violar a correlação entre serviços prestados e contraprestação, com ocorrência de abuso de direito, por obtenção de vantagem manifestamente excessiva, deixando de cumprirem com a função social da empresa, bem como incorrer em enriquecimento ilícito”.
Entretanto, de se ponderar que: “As operadoras de planos de saúde têm dificuldades em custear cobertura assistencial total aos gravames de saúde de seus consumidores, tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado, o qual é genericamente remunerado por arrecadação de tributos. Elas devem receber proporcionalmente aos serviços que prestam, dentro das previsões constantes de honestos cálculos atuariais, pelos quais se apuram dimensões de atendimentos e custos dos mesmos dentro do grupo de beneficiário dos planos. As operadoras não são entidades filantrópicas e atuam dentro de um sistema capitalista, onde obter lucro moderado ou razoável não é pecado algum. A cobertura integral acarretaria alto valor da contraprestação e afugentaria consumidores, podendo inviabilizar a atuação de grande parte das operadoras do sistema”. “Os pagamentos às operadoras por assistência à saúde prestada aos consumidores podem ocorrer a título de contraprestações advindas destes ou do Estado (SUS), neste último caso a título de ressarcimento pela execução de ações ou serviços de saúde ao poder público cabente, por não estarem as operadoras obrigadas a prestarem os mesmos serviços, quer por disposição legal, quer contratual”. “O atendimento integral e às expensas das operadoras, sem prévios cálculos atuariais e ajustes nas prestações, geraria desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, com perspectivas de liquidação extrajudicial das operadoras. Estas estariam executando atendimentos de gravames de saúde não incluídos em seus cálculos atuariais e, portanto, não embutidos nos valores das contraprestações, ocasionando-lhes prejuízos insuportáveis ao longo do tempo”. “Deve haver amplo e irrestrito atendimento imediato à saúde do consumidor de plano de saúde, pela operadora, para depois se discutir eventual divisão de custos pelos serviços prestados entre a empresa e o SUS (se a assistência prestada era de responsabilidade do plano de saúde contratado ou estava fora do âmbito de cobertura e caberia ao SUS).”
A questão da compensação financeira entre os sistemas público e privado de saúde, mencionada na Lei nº 9.656/98, em seu art. 32, visa a evitar o enriquecimento sem causa das operadoras de planos de saúde às custas do Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo assim a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo. A nosso ver, até por uma questão de isonomia, bem como de sobrevivências dos planos de saúde, os quais desempenham papel importante e indispensável na prestação de serviços de saúde, nada impede que haja modificação legislativa para possibilitar o caminho inverso, ou seja, no caso de o plano ou seguro saúde prestar atendimento não contratualmente possa ele cobrar do SUS pelas despesas realizadas. Até porque, pelo art. 196 da Constituição Federal, teria o poder público de arcar integralmente com esses custos caso o paciente procurasse diretamente o sistema público e não o sistema privado, não se podendo negar-lhe atendimento sobre o argumento de que o paciente é beneficiário de um plano de saúde. Entretanto, essa demanda diretamente apresentada ao ente público de saúde sobrecarregaria ainda mais o já combalido sistema público de saúde, podendo ser exercida pelos prestadores privados com maior celeridade e, não raras vezes, com maior qualidade.
Para solucionar esse conflito de interesse no custeio do atendimento integral à saúde do usuário de plano de saúde, poderá contribuir com Projeto de Lei nº 7419/2006, de relatório do deputado federal Duarte Jr., que está tramitando na Câmara dos Deputados, havendo negociações no sentido de contemplar soluções para o alegado déficit financeiro que estaria sendo suportado pelas operadoras de planos e seguros de saúde. Essa negociação, envolvendo a Presidência da Câmara dos Deputados e a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) permitiu, temporariamente, suspender ou revogar cancelamentos unilaterais de contratos de pacientes que fazem tratamento contínuo. Entretanto, a nosso, ver, fundamental que sejam respeitadas as premissas que procuramos alinhavar nas breves considerações retrocitadas quando da apreciação do mencionado PL.
Seja como for, para garantir que haja uma prestação de serviços de saúde ao paciente, com agilidade e qualidade, até em nome da dignidade da pessoa humana, imprescindível que o beneficiário de um plano ou seguro saúde seja imediata e integralmente atendido, quer pelo profissional credenciado pelo plano/seguro saúde, quer por alguma unidade de saúde do poder público de qualquer ente federativo.
Nesse contexto, seria postergado para um momento futuro a questão de que o ente privado ressarça o ente público ou vice-versa, para tanto bastando alterar o art. 32 da Lei 9.656/98, visando torná-lo não mais uma via de sentido único (SUS sendo ressarcido pelo operador privado de saúde), mas uma via de mão dupla, proporcionando dignidade ao usuário e tornando concretas às disposições do art. 22 da Lei 8.080/90 (Lei do SUS) e Do art. 196 da Constituição Federal, o qual garante “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Nesse contexto, papéis cruciais caberão à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), na qualidade de reguladora do sistema de saúde privado, bem como aos tribunais de contas, visando zelar para que os valores dos ressarcimentos (de lado a lado) sejam justos e cubram apenas os custos dos serviços prestados, circunstâncias que também podem vir previstas no referido projeto de lei, o qual, segundo a imprensa, deverá passar por ajustes nos próximos dias.
* Ivan Carneiro Castanheiro é promotor de Justiça pelo Ministério Público de São Paulo, membro do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). É autor de capítulos de livros e artigos jurídicos na área ambiental, urbanística e consumerista.
** Soraya Gomes Cardim é advogada com atuação na área de Direito do Consumidor e professora de direito.
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