O noticiário dos primeiros dias do mês de outubro de 2021 está recheado de informações relacionadas com o “Pandora Papers”. Trata-se de uma ação colaborativa organizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos que apurou, nos últimos meses, com base numa fonte anônima, o funcionamento de milhares de empresas em “paraísos fiscais”, principalmente nas Ilhas Virgens Britânicas.
Entre as principais revelações desse esforço jornalístico estão: a) os acionistas de 20 das 500 empresas que mais empregam no Brasil têm sociedades offshores; b) Paulo Guedes(Ministro da Economia) e Roberto Campos Neto (Presidente do Banco Central) possuem offshores com recursos milionários; c) brasileiros com offshores que aparecem no “Pandora Papers” devem à União 16 bilhões de reais em tributos e d) empresários bolsonaristas, investigados por “fake news”, têm empresas offshores.
As praças financeiras offshores, também conhecidas como “paraísos fiscais”, são um dos fenômenos mais visíveis do que se pode chamar de globalização tributária. Nesses “espaços” globalizados, os bancos, as seguradoras e os fundos de investimento gerem, sob sigilo, os recursos de seus clientes com o explícito objetivo de colocá-los fora do alcance ou “protegidos” dos governos dos países de origem. Assim, são praticadas cargas tributárias reduzidas ou inexistentes para depósitos de estrangeiros.
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O surgimento dos “paraísos fiscais” guarda íntima relação com: a) a história do imposto sobre a renda, marcado por regimes com pressão tributária elevada e crescente; b) a adoção do princípio da renda mundial (“worldwide income taxation”); c) a busca de solução para o problema da dupla tributação internacional.
Importa destacar que existem diferenças razoáveis nos “benefícios” oferecidos pelos “paraísos fiscais”. Podem ser conhecidos ou identificados também como “paraísos societários”, “paraísos bancários” e “paraísos penais”.
Além de permitir a fuga da tributação praticada nos países de origem, os “paraísos fiscais” viabilizam operações “seguras” de “lavagem de dinheiro” para toda sorte de recursos ilícitos, notadamente relacionados com o tráfico ilegal de drogas e a corrupção.
Informações jornalísticas da BBC News Brasil, em 2012, com base no documento “The Price of Offshore Revisited”, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, indicam que os “ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais”. Essa montanha de recursos somava 520 bilhões de dólares em 2010.
Convém destacar a importância das modernas tecnologias da informação e da comunicação no mundo globalizado das finanças. Invariavelmente, os “paraísos fiscais” não dispõem das condições materiais e de infraestrutura para a administração dos vultosos capitais manuseados. Praticamente tudo funciona por intermédio de computadores e redes. A presença física no território do “paraíso fiscal” pode ficar literalmente limitada a um representante legal. Nessa linha, os principais bancos alemães, britânicos, japoneses e americanos, apesar de vistosamente sediados nos seus países de origem, conseguem manter uma expressiva quantidade de seus registros, em forma eletrônica, nas praças offshores.
Os “paraísos fiscais” não são ilegais. Manter recursos (milhões ou bilhões de dólares) em “paraísos fiscais” não é ilegal. Trata-se de mais um formidável exemplo de utilização da institucionalidade jurídica para viabilizar um poderoso mecanismo de administração e acumulação de riqueza de forma particularmente perversa. Afinal, os recursos tributários que não são arrecadados dos superricos em “paraísos fiscais” são exigidos, aumentando a carga tributária, dos trabalhadores e micro, pequenos e médios empresários que só conhecem “paraísos fiscais” por notícias da imprensa (são os setores não globalizados).
Não é por outra razão que o Brasil pode ser visto como paraíso e inferno fiscal ao mesmo tempo. É um inferno fiscal para os trabalhadores, inclusive a chamada “classe média”, e para os micro, pequenos e médios empreendedores. Para esses setores a carga tributária é invariavelmente elevada, regressiva, embutida no consumo e entrave para os negócios com bens e serviços da “economia real”. Para esses segmentos não existe, na prática, a possibilidade de fuga para “paraísos fiscais”. Por outro lado, o Brasil é um “paraíso fiscal” para os ricos e superricos. Aqui, inúmeras rendas decorrentes do capital sofrem tributação abaixo dos 20% (vinte por cento), parâmetro para caracterizar a “países ou dependências com tributação favorecida” (Instrução Normativa nº 1037/2010, da Receita Federal do Brasil).
Existe uma faceta do funcionamento dos “paraísos fiscais” claramente caracterizada com ilícita, ao menos no Brasil. A conclusão pela infração ética e pelo conflito de interesses na manutenção de “investimentos” em “paraísos fiscais” pelas principais autoridades econômicas reclama somente uma singela leitura dos pertinentes dispositivos legais. São eles:
“É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP venha a especificar” (Código de Conduta da Alta Administração Federal. Artigo quinto. Parágrafo primeiro).
“Configura conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal: (…)
II – exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe;
III – exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas” (Lei n. 12.813, de 2013. Artigo quinto).
Não custa sublinhar que será demitido um servidor público flagrado como gerente ou administrador (prática efetiva de atos de gestão) de um simples restaurante (art. 117, inciso X da Lei nº 8.112/ 1990). Centenas de punições dessa natureza, com essa motivação, são publicados anualmente nos diários oficiais. Trata-se, obviamente, do combate a um conflito de interesses infinitamente mais brando do que aquele acima cogitado para as autoridades máximas condutoras da política econômica governamental.
Ademais, como aceitar, a partir de qualquer padrão de moralidade que possa ser posto com um mínimo de razoabilidade, que o piora do cenário econômico conduzido (também ou principalmente) por uma autoridade pública pode implicar em direto e imediato incremento do patrimônio pessoal convenientemente protegido no exterior? Aliás, protegido, entre outros, das vicissitudes das decisões de política econômica adotadas pela autoridade ou sob sua inspiração.
Não se imagina como impraticável, ou mesmo difícil, obstar o curso de “fuga” dos capitais nacionais rumo aos portos seguros “ao largo da costa”. Com certeza, procedimentos relativamente simples das várias autoridades estatais permitiriam impor disciplina às vorazes forças do mercado. A pretensão, no entanto, esbarra em três poderosos obstáculos: a) a intocável máxima, verdadeiro dogma, da circulação livre dos capitais; b) a indisfarçável chantagem das ameaças de transferências dos “negócios” para outra localidade mais “amigável”, mais “compreensiva” e c) a força legislativa dos interesses bilionários dos usuários dos “paraísos fiscais”.
Portanto, o “paraíso fiscal” é um, apenas um, dos inúmeros mecanismos utilizados e caracterizadores de uma economia planetária que escapa do controle dos estados nacionais, realiza uma profunda extração de riqueza, pelas vias do frenético mercado financeiro, do conjunto das sociedades e produz abissais desigualdades socioeconômicas.
Concluo com uma perguntinha ingênua. Os operadores desse sofisticado e privilegiado “cassino global” ocupam postos públicos de comando das economias nacionais para atender os interesses da grande maioria da sociedade (os 99% compostos de trabalhadores e micro, pequenos e médios empresários gestores do fornecimento de bens e serviços da chamada “economia real”)?
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