No dia 23 de novembro tive a honra de receber como homenagem, juntamente com Flávia Oliveira e Tia Ju, as medalhas Esperança Garcia, do Instituto dos Advogados Brasileiros(IAB), que deu origem a Ordem dos Advogados do Brasil(OAB) e que conta hoje com a Dra Edmee Ribeiro Cardoso na direção do IAB/RJ, sendo a primeira mulher negra a ocupar tal cargo. Muito nos orgulha possuir essas medalhas, que se referem a uma mulher escravizada no século 18, no interior do Piauí e que fez uma petição ao juiz contra os maus-tratos sofridos por ela e seu filho na fazenda em que vivia. Tal documento é considerado a primeira petição brasileira feita por uma mulher preta, escravizada, alfabetizada, lutando sozinha por direitos humanos e que se tornou a representação das mulheres pretas que lutam por cidadania e justiça até nos dias atuais.
A medalha Esperança Garcia se destina a mulheres que lutam por inclusão social, equidade de gênero e raça, respeito à diversidade e preservação do estado democrático de direito. Não pude deixar de recordar meus tempos na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ onde, com os companheiros da UNE, participei de ações na Estação Primeira de Mangueira e no Salgueiro, buscando apoiar essas comunidades em seus direitos por cultura, lazer, saúde e trabalho. Tempos depois comecei a atuar nos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, o que me permitiu participar de cursos de Mestrado em Direito em João Pessoa na Paraíba, em Vitória no Espírito Santo e em Salvador, Bahia. Lidar com advogados , promotores, juízes e defensores públicos de diferentes territórios brasileiros me permitiu, cada vez mais, valorizar o estado democrático de direito como limitador dos excessos comuns aos dirigentes, que ocupam posições de comando e decisão. Trabalhar com Ética e Cidadania no Direito Brasileiro me possibilitou relacionar os conceitos do pensamento europeu a conceitos de filosofia africana, tema de meu Doutorado em Filosofia, onde situei as Implicações para o Ideal de Pessoa na sociedade judaico-cristã e numa comunidade-terreiro nagô, no que se refere ao ideal de pessoa.
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Como militante de Movimento Negro tenho atuado junto ao movimento de Mulheres Negras, desenvolvendo com a companheira Jana Guinond cerca de vinte e cinco programas sobre cultura negra, tratando de música preta, literatura , dança e arte preta brasileira, latina, americana e africana. O programa Alafiá Mundo pela internet, toda segunda quarta-feira de cada mês, nos transporta a um encontro comunitário internacional, como se estivéssemos à volta da fogueira, conversando com nossos parceiros de diferentes lugares , trazendo memórias de um ontem que reverberam neste hoje e dão suporte para a manutenção do nosso amanhã.
No atual momento em que vivemos, com tantas contradições na Europa e Américas, o nome esperança nos leva a olhar o futuro com um sentimento novo, com a expectativa de novas conquistas e melhores formas de convivência para a comunidade preta brasileira a partir da eleição de um novo presidente. Sabemos que o desafio é imenso, pois desconstruir falas consolidadas pelo tempo, abrindo espaços para novos pensamentos que nos permitam emitir falas e percepções não conhecidas significa construir novas idéias que nunca foram vistas nem percebidas. Pensar que numa comunidade=terreiro existem montanhas de conhecimento que nos permitem subir, subir e subir, mas de mãos dadas, chegando juntos aos píncaros da glória, olhando para os lados , brincando juntos de quebra-cabeças, nos leva às ideias de Iwá Pèlè e Iwá Rere que podemos traduzir como bom caráter e boa ética, provenientes da filosofia africana iorubá.
Esses conceitos são vividos nas comunidades-terreiro de matrizes africanas na atualidade, com base na oralidade, presente como um saber filosófico legado por antepassados africanos de origem iorubá, trazidos como escravizados para cá e conhecidos como Iorubás. Tais conceitos são filosofias que orientam nossas vidas em integralidade. Não há dissociação entre ética e moral, já que ter ética nos leva a imaginar todos de mãos dadas com seus ancestrais e seus parceiros, num sentido profundo de coletividade. Para esses povos não se pode dissociar a ética da moral dados os códigos simbólicos que os ligam à sua ancestralidade.
Muniz Sodré chama a atenção para que iorubás chegaram aqui no século 18, provenientes da Nigéria: reis, rainhas, princesas, sacerdotes, pensadores, artistas, artesãos. O tipo de educação que usavam era de se educar para o sensível. Arte e beleza sempre fizeram parte desta sociedade. Nesta tradição a territorialidade é muito importante e os orixás a ela se referem. A vida aqui no Brasil fez com que reteritorializassem seus espaços, fazendo das comunidades-terreiro um espaço de África aqui. Buscaram a valorização da aproximação das pessoas, usando a corporeidade do outro para crescimento do pensamento, As categorias que atravessam o terreiro se ligam a espaço, corporeidade e educação iniciática que valoriza a ética e a moral. Não é uma cultura que valorize o acúmulo de bens, mas sim de pessoas , voltadas para a ótica da alegria, vista como harmonia perfeita entre pessoas, espaços, plantas e animais.
Existem idéias que se pautam em se valorizar as pessoas e o mundo em que se vive. É com a afinação de um violão, como o barulho da chuva, o voar dos pássaros, numa afinação feita com o mundo, que nos lega algo como o nome medalha que recebi: esperança de sorrir para tudo e todos, aqui e agora.
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