O governo Bolsonaro vendeu uma ilusão de que o liberalismo teria vez no Brasil. A desgastada fórmula “conservador nos costumes, liberal na economia” já trazia em si uma contradição difícil de sustentar em termos filosóficos. A funesta condução da economia com Paulo Guedes, contudo, fez naufragar de vez qualquer traço de liberalismo que desavisados quisessem vislumbrar no governo.
John Locke, pensador inglês do século XVII, consolidou as bases do liberalismo baseado em algumas ideias fundamentais. Em primeiro lugar, a propriedade deriva da ação do indivíduo no mundo, seria pré-social, antecederia qualquer construção ou acordo entre os homens. O ser humano, pela capacidade de fazer diante da natureza, constituíra a propriedade com a ação de seu ser.
Deriva da ideia de propriedade inata de John Locke a proeminência da troca, e por consequência do mercado, nas relações humanas. O ato da troca carrega em si características únicas: traz ganho a ambos os participantes – pois realizam a troca por entenderem-na vantajosa – e dá-se sob a plena liberdade do mercado.
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Esse gérmen teórico fundamental seria explorado um século depois por Adam Smith, outro expoente do liberalismo, ao identificar nas relações de troca desimpedidas, voluntárias e volitivas a força motriz da produção de riqueza. O que Smith compreendeu é que a ideia filosófica de Locke, ao ser aplicada no contexto social concreto, traria transformações ao arranjo social e liberaria as amarras para o crescimento econômico.
As ideias básicas do liberalismo resistiram ao tempo e permeiam nossa sociedade hoje. Pregam o império do mercado sob a crença de que é ele que produz riqueza e torna a sociedade melhor. Seu corolário são o equilíbrio fiscal, a desregulamentação, a abertura comercial, a desestatização.
Retornando a John Locke, contudo, outro elemento central de seu liberalismo é a liberdade do indivíduo em suas crenças e práticas sociais. Na Inglaterra do tempo de Locke, às voltas com guerras civis recheadas de lutas entre católicos e protestantes e vivendo um capitalismo incipiente, a vida privada de um indivíduo foi defendida pelo pensador inglês de forma muito mais contundente do que a liberdade econômica. O mundo privado consistia em tudo que se ligava diretamente ao íntimo da pessoa, e deveria ser resguardado da intervenção do estado e da coletividade.
Um indivíduo que tenha então toda liberdade de empreender e comerciar, mas que seja manietado nos valores de sua vida privada é então um indivíduo liberal anacrônico. Provavelmente Mister Locke hoje torceria o nariz se fosse avisado que uma pessoa teria direito de empreender livremente, mas tivesse que necessariamente professar o cristianismo.
Vê-se assim que o dito “liberal na economia e conservador nos costumes” no mínimo não honra as origens filosóficas de onde procede, e na prática mostra-se como um arranjo tacanho de preconceitos e conservadorismo numa sociedade que cultua a desigualdade e uma gama de discriminações. Afinal, nada melhor do que deixar as relações de mercado correrem soltas para quem pode e controlar os comportamentos dos “subalternos” por padrões “conservadores nos costumes”!
Contudo, essa excrecência brasileira ganha ares ainda mais farsescos nas mãos do Ministro da Economia Paulo Guedes e seus asseclas. Talvez eles sejam conservadores nos costumes, afinal qualquer um pode sê-lo. Mas podemos afirmar que não são liberais na economia.
Guedes e seu time terminam o governo Bolsonaro sem ter realizado privatizações que incrementassem o mercado. A venda da Eletrobras talvez entre para o livro dos recordes das contradições, pois tantos foram os jabutis embutidos na operação – como os deploráveis gasodutos – que tudo pode acontecer, menos o aumento da eficiência econômica.
Contudo, a situação catastrófica das finanças públicas vence como a marca mais indelével do antiliberalismo. Os liberais adoram sua metáfora do orçamento doméstico para vender a responsabilidade fiscal. Mesmo que saibamos, nós e eles, que isso é simplificar demais, descarnar o Tesouro para vencer uma eleição, inviabilizar os últimos meses do governo – vide universidades e institutos federais em penúria e INSS – e deixar contas bilionárias para quem assume em seguida não são credenciais de nenhum liberal.
O liberalismo em nossa terra precisa sim ser resgatado. Em primeiro lugar no aspecto político e social, pois ainda nem cumprimos os direitos civis pelos quais John Locke escreveu, e nossa política ainda é fortemente autoritária.
Em final de ano, quando avaliações do que passou são feitas e planos futuros são traçados, precisamos ter clareza que não convivemos com liberais nos últimos quatro anos. Provavelmente vimos conservadores nos costumes quererem demonstrar algum verniz que causasse boa impressão em suas universidades de origem ou círculo de negócios, mas a realidade foi de ações tíbias quando pressionados e oportunistas quando envolveram-se no projeto de reeleição a qualquer custo de Jair Bolsonaro.
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