Os meses de setembro, outubro e novembro deste ano foram e permanecem marcados no Brasil pela chegada de ondas de calor intenso cobrindo todo o país. Alertas de altas temperaturas foram emitidos em diversas capitais, como Brasília, Rio de Janeiro e Manaus. Ao longo de 2023, diversas regiões do mundo foram atingidas por fenômenos semelhantes, levando a Organização Meteorológica Mundial (OMM) a considerar este o ano mais quente da história.
O climatologista Carlos Nobre, co-autor da pesquisa vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2007, diretor científico do Instituto de Estudos Climáticos da Universidade Federal do Espírito Santo e conselheiro científico da Secretaria-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), alerta que a elevada incidência dessas ondas de calor não apenas é inédita para a humanidade, mas também supera a própria capacidade natural de resiliência térmica da espécie humana.
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Em entrevista ao Congresso em Foco, o cientista brasileiro ressaltou que o aviso da OMM não se restringe aos registros climáticos já feitos pelo homem, mas que as temperaturas percebidas ao redor do mundo em 2023 superam as de todos os anos desde o último período interglacial, há 125 mil anos.
“Nós, enquanto espécie homo sapiens, não evoluímos preparados para essas ondas de calor. Nós não nascemos preparados para sobreviver em temperaturas que ultrapassam os 40ºC, em ondas de secas intensas, umidade relativa do ar chegando a 20%, 30%, ou mesmo o calor acompanhado de umidade extrema, como acontece no litoral”, alertou. Doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), Carlos Nobre afirma que as mudanças radicais na gestão pública são necessárias em todos os países caso queiram resistir à intensificação das ondas de calor.
Fenômeno natural intensificado
O climatologista explica que ondas de calor, ou cúpulas de calor, são um fenômeno que sempre aconteceu naturalmente, com causas bastante conhecidas na meteorologia. “O que acontece é que o aquecimento global está fazendo esses fenômenos extremos, como ciclones extratropicais, ficarem mais fortes. Isso também se aplica às ondas de calor”, apontou.
Com a temperatura da Terra mais elevada, realidades como esta tendem a perdurar. “Com o aquecimento global, a gente não tem nenhuma perspectiva de ver a diminuição da intensidade desses fenômenos. Não apenas ondas de calor, como também secas e chuvas severas. Isso tudo vai acontecer em uma frequência que antes, décadas atrás, não aconteciam. Esse vai ser o ‘novo clima normal’ se continuarmos aquecendo o planeta”. A sensação térmica no Rio esta semana chegou, em algumas regiões, a encostar nos 60 graus Celsius.
As ondas de calor, porém, se destacam no grau de letalidade provocada. “Elas são o fenômeno climático que mais provoca a morte de pessoas, mas são mortes que não acontecem de forma instantânea, como ocorre nos deslizamentos de terra ou inundações”, alertou. A exposição prolongada ao calor atinge a saúde especialmente de idosos e crianças pequenas, que ficam expostos a problemas cardiovasculares e pulmonares.
Se o aquecimento global chegar ao aumento de 4ºC em relação ao parâmetro pré-aquecimento global, Carlos Nobre destaca que algumas regiões do mundo podem se tornar inviáveis para a espécie. “Quando a temperatura está acima de 35ºC e o ar muito saturado de vapor, o corpo não consegue mais resfriar. Um idoso e um bebê só sobrevivem meia hora nesse estresse térmico, e um jovem adulto por duas horas. Diversos lugares do mundo, como o próprio Rio de Janeiro, ficarão quase inabitáveis. O ser humano não resiste a essas condições”. O mundo já se encontra 1,2ºC mais quente do que no período pré-industrial.
Adaptação intensa
Uma série de mudanças em larga escala terá de ser adotada por gestores públicos de estados, municípios e países de regiões mais quentes para que a população possa resistir à nova realidade climática. A primeira delas, diz Carlos Nobre, é o investimento massivo em saúde. Isso envolve tanto aplicar recursos para o atendimento clínico quanto em medidas de conscientização.
O passo paralelo é o mais desafiador: implementar mudanças na infraestrutura das cidades para que permaneçam habitáveis. “Para resistir a essas contínuas ondas de calor, que vão perdurar por séculos, são necessários microclimas que não tragam impacto para a saúde, ou seja: ar condicionado. Acontece que poucos brasileiros têm acesso a um ar condicionado. Vai ser necessário que o governo subsidie o acesso a esses produtos”, recomendou.
O acesso aos aparelhos não deve se restringir ao meio residencial: sistemas de transporte, matrizes industriais, vagões de trem e diversos outros ambientes vão exigir a adoção de tecnologia de climatização. “Estamos falando aqui de investimentos de centenas de bilhões de reais ao ano em adaptação climática”, esclareceu.
A adoção em larga escala de aparelhos de ar condicionado vem acompanhada de outros desafios. “Com o aumento dos aparelhos de ar condicionado, teremos custos altíssimos para fornecer energia elétrica, portanto serão necessários mecanismos para aprimorar esse abastecimento”.
Superadas essas etapas, o grande desafio diz respeito a como garantir a sobrevivência da biodiversidade na Terra, tendo em vista que a maioria das espécies não está adaptada para as temperaturas mais quentes. A Amazônia fica especialmente vulnerável nessa situação. “Não há registro histórico de qualquer água na Amazônia ter atingido a temperatura que atingiu este ano”, relembrou o climatologista.
Os exemplos do impacto do calor sobre a vida na Amazônia já começaram a aparecer, como no caso do surgimento de botos e tucuxis mortos no lago Mamirauá, no noroeste do Amazonas. A água do lago superou os 39,6ºC, ultrapassando a temperatura máxima que esses animais são capazes de suportar. “Eles não evoluíram, em milhões e milhões de anos, com a água tão quente. Nós, humanos, podemos buscar um ambiente mais fresco. Esses animais, soltos pelo planeta, já seguem sem proteção”, lamentou.
A defesa da biodiversidade contra o calor, porém, é um problema que segue sem uma resposta sobre como enfrentar.
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