Pouco antes do final de 2023, um grupo de estudiosos das questões relacionadas ao controle das tecnologias digitais pelos grandes conglomerados multinacionais de tecnologia e ativistas que defendem os direitos dos cidadãos na internet lançaram um Manifesto da Rede pela Soberania Digital.
Se o Manifesto repercutiu no mundo acadêmico e nas muitas entidades que constroem a resistência ao avanço predatório das plataformas digitais, sem respeito à cultura, aos valores nacionais e até mesmo à legislação do país e às nossas instituições, ele passou desapercebido do grande público. Afinal, o tema da soberania digital, tão relevante e estratégico para o futuro de qualquer país quanto a indústria do petróleo, parece não ocupar lugar nas preocupações da nossa mídia corporativa e das nossas elites.
No momento, o Manifesto está angariando apoio de um conjunto de entidades da área do Direito, da Comunicação Social, dos Direitos Humanos, da Defesa da Igualdade Étnico-Racial e de Combate ao Racismo, de Defesa dos Direitos das Mulheres, dos Povos Originários, da População LGBTQIAPN+. O objetivo é levar o debate da urgência da defesa da soberania digital a diferentes plateias e públicos e, também, no âmbito do Congresso Nacional e das diversas instâncias do governo federal.
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O Manifesto tem quatro eixos. Em primeiro lugar, não aceita o papel de submissão tecnoeconômica que foi imposta ao Brasil na nova divisão internacional do trabalho, que nos relega ao papel de exportadores de matérias-primas e produtos manufaturados de baixo valor agregado e de meros consumidores de tecnologia.
Em segundo, o Manifesto reconhece que somos usuários de tecnologia, gostamos de suas facilidades e possibilidades, mas nosso objetivo vai muito além, pois temos condições de ser desenvolvedores de tecnologia. “Queremos autonomia tecnológica, queremos nossas cosmovisões e culturas incorporadas às soluções que podemos inventar”, afirma o texto.
Para isso, o Manifesto diz que o país precisa contar com infraestruturas digitais soberanas, ou seja, dispor, em território nacional, de bancos de dados físicos e em nuvem controlados pelo poder público para armazenar os dados públicos e estratégicos do país. Este é o seu terceiro pilar. Pode parecer óbvio mais não é. Cada vez mais dados de serviços públicos do país – e de seus cidadãos – estão sendo armazenados em data centers virtuais de oligopólios tecnológicos, sem respeito às garantias contratuais estabelecidas pela legislação brasileira.
Frente a esse cenário, o Manifesto considera essencial que, no campo legal, as autoridades usem a legislação para coibir práticas comerciais abusivas das plataformas digitais adotadas em massa em nosso país, que estimulam a discriminação e graves desigualdades sociais, culturais e econômicas. O quarto pilar é o cumprimento rigoroso da legislação existente, seja na área da proteção dos dados pessoais seja na defesa da concorrência.
Problema real
Não é mais novidade que a coleta e circulação dos dados são, hoje, elemento central de aceleração de muitos segmentos econômicos do capitalismo do século 21. Desde que as modernas organizações descobriram que o dado pode ser usado como insumo para gerar valor, ou seja, para produzir produtos para o mercado, elas passaram a extrair todos os dados possíveis, de todas as fontes disponíveis, por todos os meios que possam empregar.
Os dados são capturados pelas plataformas digitais indistintamente de todos os seus usuários, em qualquer país do mundo onde ofereçam seus serviços. Mas a economia dos dados impacta de forma distinta países desenvolvidos e países periféricos dependentes. Pela simples razão de que os países centrais são os que desenvolvem as tecnologias de ponta e detêm a infraestrutura tecnológica (as redes de comunicação, os servidores, o desenvolvimento de software) e legal (patentes e domínios) que suporta a produção e armazenamento das bases dados, enquanto os países dependentes ocupam lugar subalterno na divisão internacional do trabalho, ou seja, via de regra não desenvolvem tecnologia.
O mercado de armazenamento de dados em gigantescos bancos de dados físicos ou na nuvem está concentrado em mãos de poucas empresas. Cinco controlam cerca de 80% do mercado: Amazon Web Services, que responde por metade disso sozinha, Microsoft Azure, Google, Alibaba e Huawei. No caso do armazenamento em nuvem, os principais players são Google, Amazon, Dropbox, Dell e HP, todas norte-americanas. Estudo da Mordor Intelligence estima que mercado de armazenamento em nuvem atingiria US$ 117,12 bilhões em 2024, com crescimento de 24% até 1929 (receita de US$ 343,33 bilhões). De acordo com as projeções do Fórum Econômico Mundial, até o ano que vem 463 exabytes de dados serão criados globalmente, equivalentes a 212.765 mil DVDs por dia.
Diante desse cenário de crescimento exponencial das bases de dados e da concentração de seu armazenamento o que vem ocorrendo é que os dados dos países periféricos em poder do Estado (também de países centrais, mas estes contam com o enforcement regulatório que mitiga em parte o poder abusivo das companhias de tecnologia) estão sendo transferidos de infraestrutura própria pública para bases de dados de companhias de tecnologia estrangeiras – estadunidenses em sua maioria – e, muitas vezes, armazenados fora do país.
Que dados são estes? São dados relativos aos serviços públicos de educação, saúde, segurança pública, dados fiscais dos cidadãos e de empresas, informações estratégicas sobre os recursos naturais do país, as bases de dados de pesquisas desenvolvidas em universidades públicas brasileiras, dados da Justiça e por aí vai.
A preocupação com a soberania dos dados tem de estar no centro da política pública de qualquer país e, com mais razão, de um país como o nosso, que precisa dar um giro vigoroso para alterar sua posição na divisão internacional do trabalho. Só com investimento em pesquisa e inovação vamos conseguir desenvolver tecnologias de ponta e criar as condições para a produção de produtos de maior valor agregado. Com isso, vamos gerar empregos de maior produtividade e, portanto, maior remuneração.
Sem dúvida nenhuma, uma das tecnologias de ponta que deve estar entre os investimentos prioritários de nosso país é a chamada indústria da inteligência artificial, cujos sistemas são todos construídos a partir dos dados. Não é por outro motivo que o escritor e pesquisador bielorusso Eugeny Morozov, estudioso do impacto político, econômico e cultural da internet e do risco das big techs para a democracia, entende que os dados deverão se constituir em um dos importantes terrenos da disputa geopolítica deste século.
Política pública
Não é tarefa fácil enfrentar as plataformas tecnológicas globais e as empresas globais de tecnologia, que, em alguns casos se confundem, pois seu poder de fogo é enorme e têm projeto claro de dominar o mundo nas esferas econômica, política e cultural. Basta lembrar a arrogância de Elon Musk, dono da rede social X, antigo Twitter, que recentemente pretendeu interferir na Justiça brasileira, ao criticar abertamente em sua conta no microblog, a conduta do ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de censor e sugerindo seu impeachment.
Mas há vacinas contra os vírus das plataformas digitais, senão para destruí-los, para contê-los. É urgente a construção de uma política de soberania digital que envolva a criação de um sistema nacional de informações geográficas, estatísticas e de dados. O professor Marcio Pochmann, presidente do IBGE, já propôs – e eu apoio – que se reúna sob um mesmo guarda-chuva os sistemas hoje dispersos entre IBGE, Serpro, Dataprev, Datasus, Relação Anual das Informações Sociais.
Temos de iniciar rapidamente o debate de uma nova legislação para estatísticas e dados no Brasil. Ainda no âmbito regulatório, precisamos definir medidas para limitar o poder de mercado das plataformas digitais dominantes a exemplo da Lei do Mercado Digital (Digital Markets Act) e da Lei dos Serviços Digitais (Digital Services Act) aprovadas pela Comissão Europeia em 2022.
Também é urgente – antes que seja tarde demais – adotar medidas para definir uma política de fomento à localização no Brasil, em infraestrutura pública, dos dados públicos sob a guarda do Estado e daqueles estratégicos para o desenvolvimento tecnológico soberano do país.
Mas não basta proteger nossos dados. Podemos usá-los – e usá-los bem – para desenvolver, por exemplo, sistemas especialistas da indústria da inteligência artificial para atender às demandas de saúde da população, ou dos produtores rurais da agricultura familiar e do agronegócio, da prospecção do petróleo e por aí vai.
Para isso, temos de construir uma política de desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação no campo da inteligência artificial que estabeleça qual será nossa posição na divisão internacional do trabalho. Meros consumidores, como somos hoje? Queremos ser desenvolvedores, mas não apenas de aplicativos. Também de tecnologias centrais que nos permitam tornar nossa cadeia produtiva de IA mais poderosa que, além de abastecer o mercado interno, possa exportar sistemas para alguns nichos de mercados nos quais vamos construir excelência.
O momento não poderia ser mais propício. O presidente Lula solicitou ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) um Plano Nacional de Inteligência Artificial. A ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, prometeu que ele estará pronto para a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, prevista para junho. O Plano não pode se limitar a uma política de uso da inteligência artificial, como aconteceu em grande parte com Estratégia Nacional de Inteligência Artificial traçada em 2021, no governo Bolsonaro. Precisa estabelecer claramente em que segmentos o país vai desenvolver ciência e tecnologia em IA, com dois objetivos: atender as demandas sociais da população; e disputar nichos do mercado externo onde tenhamos chance de competição.
O desenvolvimento de um Plano Nacional de Inteligência Artificial pressupõe, necessariamente, uma política de proteção dos dados públicos e estratégicos do país. Temos que proteger nossos dados – do país, de seus cidadãos e de suas empresas – da mesma forma que defendemos a proteção de nossas riquezas naturais. Pelo papel que os dados jogam hoje na economia mundial, não se pode falar em soberania sem considerar também a soberania digital.
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