Edemilson Paraná *
Na obra O Príncipe, Nicolau Maquiavel – um dos cânones do pensamento político ocidental, aponta que o destino dos seres humanos é governado fundamentalmente por duas forças: a Virtú, ou seja, a capacidade de intervir, empreender e realizar, por si próprio, os atos na história; e a Fortuna, a sorte, o acaso, o imponderável que sepulta ou potencializa por meio de sua glória ou tragédia, tais ações, resultando em derrotas ou vitórias nos vários atos da ópera da existência humana. Poucos casos se encaixariam tão bem nesse quadro interpretativo quanto a trajetória de ascensão e queda de Marina Silva (especialmente nos últimos quatros anos).
Na esteira das recentes transformações sócio-políticas no Brasil (diminuição da pobreza extrema, composição de uma nova classe trabalhadora precarizada – também chamada nova classe média, aumento do poder de consumo, avanço do neopentecostalismo, entre outras), Marina despontou como a figura “quase-perfeita” para decretar o golpe de misericórdia no (não)projeto petista de manutenção do poder. Para além de um ambientalismo de conciliação e uma retórica “pós-ideológica” sedutora em tempos como o nosso e característica das multidões de junho, a força simbólica de sua história e condição (mulher, negra, amazônida, evangélica, que superou a pobreza extrema do Brasil profundo) reluziam uma miríade de afetos e complexidades políticas comparáveis em sua dimensão recente apenas ao ex-presidente Lula. No meio do caminho, uma saída performática do PT, a criação de um movimento que caminhava na direção do espírito-do-tempo anti-institucional, o patrimônio de 20 milhões votos obtidos na eleição anterior e a comoção com a morte do então presidenciável Eduardo Campo. Nada parecia faltar.
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Apesar disso, o fenômeno Marina (e sua “nova política”) mostrou-se de papel. Diante de ventos mais fortes da “política como ela é” não aguentou o tranco e definitivamente sacramentou a impressão de estar aquém da tarefa histórica. Apesar da Fortuna (como encontro de condições históricas e conjunturais) que lhe sobrou, a Virtú definitivamente não tem sido constitutiva de sua atuação no último período.
No começo recebida com alguma desconfiança por parte das elites dirigentes, foi logo por elas abraçada como a via “útil” na superação de um petismo que não incomoda de fato naquilo que é fundamental, mas tampouco agrada integralmente os velhos donos do poder. Entre o oportunismo e a ingenuidade, um conjunto de artistas e intelectuais ora conhecidos como “progressistas” embarcou na onda de uma suposta oxigenação da política brasileira com Marina. Na falta de uma alternativa real, o mudancismo ansioso cobrou sua conta: deslocou-se, de modo tragicômico, à direita da ordem.
Um misto de capitulação escancarada com erros táticos sérios selou o destino de Marina. O primeiro grande erro foi desembarcar seu patrimônio eleitoral nas hordas do PSB de Eduardo Campos – que via 2014 como parte de uma ousada costura (com acenos efusivos especialmente ao setor financeiro) para sua real viabilidade eleitoral em 2018. Pragmático, homem de consensos interessados e grandes negociações, era a quase materialização da política tradicional contra a qual Marina se construiu como oposição. Começa aí o que seria o trágico fim da Rede Sustentabilidade – o que, do ponto de vista eleitoral (mas não só), havia de mais promissor e de fato oxigenado em volta de Marina. Tratá-la como uma base acrítica e secundarizar os “sonháticos” nos momentos de decisão política foi fatal. Daí para frente, seguiria, sem volta, sua “estrada para perdição”.
Diante de um crescimento avassalador nas intenções de voto, abandonou a retórica “pós-petista”, aprofundando concessões ao conservadorismo e até a adesão a um anti-petismo primário (um erro político que vai da direita à esquerda). Ao invés de apresentar uma plataforma política clara e enérgica capaz de mobilizar, optou pela tradicional via da conciliação de interesses a qualquer custo (esquecendo-se que nessa escola PT e PSDB dão aula), implodindo, assim, por dentro, a “nova política”. Essa movimentação se aprofundava quanto mais chances de vitória parecia ter: acenos para o mercado financeiro, para o agronegócio, para multinacionais, para setores conversadores. Suas contradições deram munição de sobra para os adversários: como o ônus da novidade era dela, para eles bastava mostrar que Marina era igual aos demais. Pouco adiantaria se fazer de vítima. Para piorar, no fim, com exceção de Pernambuco, o desdobramento eleitoral da comoção com a morte de Eduardo Campos estiveram aquém do que se imaginou.
Tudo somado, Marina saiu menor do que entrou, uma das piores coisas que podem acontecer a um político. As elites desconfiadas – para quem, diante de um projeto que não seja de fato “orgânico”, concessões nunca bastam – refugiaram-se novamente sob o tradicional guarda-chuva eleitoral do PSDB. E, por fim, seus movimentos pragmáticos (que não agradaram, a bem da verdade, nem gregos nem troianos) destruíram de vez o que restava da Rede Sustentabilidade, que terá dificuldades de se reerguer depois desse baque.
As indicações, no entanto, estavam bastante claras desde o início (o projeto pessoal a qualquer custo, a opção pelo fisiologista PV em 2010, a submissão de um potencial como a Rede à realpolitik da candidatura Eduardo Campos, etc.). Bastaria uma leitura um pouco mais cuidadosa da história política recente do Brasil, da nossa condição socioeconômica dependente, da nossa brutal estratificação social e do papel que o (Neo)Udenismo joga nessa conjuntura. Não se trata de produzir espantalhos em prol do velho e caquético PT, longe disso. É que a ilusão pode até ser algo confortável, mas não resiste ao primeiro e mais trivial ajuste contas com a realidade. Apesar de sua estética do século XXI, em seu núcleo teórico, a nova política de Marina é feita pelo menos desde 1930 (“façamos a revolução antes que o povo a faça”), desde a República Velha (“não há nada mais conservador do que um liberal no poder”), desde o início deste país enquanto unidade política: “mudar para que tudo permaneça como antes”.
Algumas lições de 2014 demandam reflexão séria por parte das esquerdas – aquelas que não têm medo de dizer seu nome. Se está na lona enquanto projeto teórico e político para o país, ficou provado que o PT ainda tem uma enorme força social, além de um aparato institucional-burocrático em governos e na sociedade civil poderosíssimo. Ainda assim, para ganhar, teve de apelar ao (nosso) voto crítico e à velha retórica popular. O aprofundamento da contradição gritante de falar à esquerda para governar cada vez mais à direta, no entanto, já está cobrando sua conta.
O fato é que uma alternativa política real leva tempo para ser construída e dificilmente será gestada apenas por uma figura pública de peso ou no espontaneísmo articulado por um conjunto de disposições estéticas e afetos transformadores. É preciso luta real e cotidiana, organizada a sério e com horizontes estratégico e tático claros; construir poder popular por meio de um novo e ousado projeto téorico-político-programático, em consonância com os desafios e dilemas da atual conjuntura histórica. Trata-se de um projeto para toda uma geração, para além da temporalidade eleitoral imediata, e que dificilmente pode vir a cabo pelas mãos do celebracionismo performático que contamina parte das oposições (à esquerda e à direita) no Brasil do século XXI. Há setores capazes e dispostos a isso hoje?
Se muito indica que Marina ficou pelo caminho, as transformações objetivas e subjetivas na política brasileira ancoradas no fenômeno social que a catapultou recentemente seguem demandando atenção: permanecem latentes e ainda moverão muito as placas tectônicas de nossa política nos próximos anos. Oxalá forças políticas capacitadas para a tarefa e realmente transformadoras tenham a possibilidade de aproveitar as janelas históricas que têm se aberto.
* Edemilson Paraná é jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e vice-presidente do Psol no Distrito Federal.
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