Djonathan Gomes Ribeiro *
Parcela significativa da população brasileira convive com sérios problemas socioeconômicos e ambientais, parte deles derivados de questões históricas. Pode-se mencionar a vida em favelas ou em territórios com graves problemas de infraestrutura onde residem populações socialmente vulneráveis e expostas a ambientes degradados, estimativas do IBGE indicam que 5.127.747 domicílios localizavam-se em aglomerados subnormais até dezembro de 2019(1); o não acesso a esgotamento sanitário, com aproximadamente 39,7% do total de 5.570 municípios brasileiros(2) não contando com serviço de esgotamento sanitário em 2017(3); e a dificuldade de acesso a alimentos, com 55,2% da população brasileira sofrendo com algum grau de insegurança alimentar em 2020(4). Como tantos outros, esses problemas ainda correm o risco de serem agravados em decorrência dos efeitos das mudanças climáticas, que têm potencial para fazer retroceder conquistas de desenvolvimento social e já podem ser observados ao redor do mundo, como destacado em relatório de 2021 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
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Os governos locais despontam globalmente como fundamentais para o enfrentamento de problemas sociais e ambientais e para a promoção do desenvolvimento sustentável – que compreende avanços integrados em dimensões como a social, econômica, ambiental, institucional e cultural -, contando com reconhecimento de sua relevância em acordos internacionais promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a Agenda 2030, a Nova Agenda Urbana e o Acordo de Paris. São nos territórios sob administrações locais – que têm diferentes níveis de autonomia de acordo com cada país – que as pessoas acessam (ou deveriam acessar) emprego, moradia, educação, saúde, espaços de lazer e cultura e diferentes políticas públicas.
No Brasil não é diferente. Com a Constituição Federal aprovada em 1988, os governos locais no país, os municípios, têm ainda mais centralidade no processo de desenvolvimento sustentável por serem entes federados – tais como os estados -, que contam com autonomia político-administrativa, podendo eleger seus governantes, tomar decisões sobre a organização administrativa e instituir e arrecadar tributos de sua competência. Os municípios contam com responsabilidades diretamente ligadas à promoção da qualidade de vida da população como transporte coletivo, educação infantil e fundamental, saúde e desenvolvimento urbano, além de poder complementar legislações federais e estaduais no que couber. Vale destacar que as políticas de desenvolvimento urbano são primordiais no processo de adaptação de infraestruturas para o enfrentamento dos efeitos esperados das Mudanças Climáticas, tal como o aumento na intensidade e na frequência de tempestades. Uma ação que pode ser mencionada é o aumento de áreas verdes e permeáveis em zonas urbanas como praças e parques, contribuindo para regulação da temperatura urbana e para evitar alagamentos; entre tantas outras indicadas em relatório do IPCC, publicado em 2022, que trata sobre mitigação e adaptação em relação às mudanças climáticas.
Embora contem com essas responsabilidades e relevância no processo de desenvolvimento sustentável, os Municípios, principalmente os de pequeno e médio porte, ainda enfrentam sérias dificuldades em termos administrativos, financeiros e de gestão. Aproximadamente 82% dos Municípios brasileiros possuem índice de receita própria inferior a 10%(5), situação que envolve outros fatores além do sistema de repartição de recursos intergovernamentais adotado no Brasil. Carências financeiras geralmente estão associadas a dificuldades relacionadas a capacidades administrativas(6) – que influenciam tanto a arrecadação própria quanto a implementação de políticas públicas pelos governos locais. Sendo assim, é urgente um esforço federativo efetivo para o fortalecimento dos entes municipais no que se refere a capacidades financeiras e de formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas.
Entre as ações que contribuiriam com esse objetivo estão o aumento dos recursos financeiros do Estado brasileiro à disposição dos municípios, que ao longo da última década ficaram com menos de 23% desses recursos(7); o fortalecimento da cooperação interfederativa em diferentes âmbitos de atuação como as ações promovidas pela União e pelos estados para a criação e robustecimento de capacidades institucionais municipais; a qualificação e ampliação dos espaços de participação social nos municípios, promovendo gestões locais transparentes, participativas e responsivas às demandas da população.
Contudo, vivemos uma situação na qual a União concentrou, ao longo da última década, mais de metade dos recursos arrecadados pelo Estado brasileiro (acima de 53%)(8) e seu novo regime fiscal (Emenda Constitucional nº 95 de 2016) – “medida mais austera do mundo” segundo Fátima Bezerra, Caio Magri, Regina Adami e Denise Carreira – contribui para menores repasses aos Estados e aos Municípios e para o desfinanciamento de políticas públicas(9); critérios de distribuição de recursos tributários entre os Municípios reforçam desigualdades territoriais(10); um sistema tributário regressivo, baseado na cobrança de tributos sobre bens e serviços(11), acirra as disputas federativas por recursos financeiros(12); propostas legislativas no nível nacional ameaçam a extinção de importante instrumento de planejamento público como o Plano Plurianual(13); e na qual a democracia sofre ataques frequentes(14).
É preciso crer que a mudança desse cenário é possível e que o Brasil pode ter um arranjo e dinâmicas federativas capazes de lidar adequadamente com os desafios contemporâneos e promover um desenvolvimento nacional que seja democrático e sustentável.
Com o objetivo de convergir e apresentar diretrizes para o aprimoramento do federalismo brasileiro à luz de um projeto de desenvolvimento nacional sustentável, o Instituto Democracia e Sustentabilidade, o USP Cidades Globais, o ICLEI-Governos Locais pela Sustentabilidade, o Instituto Ethos e o Programa Cidades Sustentáveis, reconhecidas instituições da sociedade civil que atuam em prol do desenvolvimento sustentável local e nacional, idealizaram a iniciativa “Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030”. A iniciativa apresenta 24 propostas relacionadas a pontos centrais da dinâmica do federalismo brasileiro com o objetivo de fortalecer a cooperação interfederativa, a capacidade de promoção do desenvolvimento sustentável por parte dos Municípios e a descentralização do poder por meio da participação social no nível local de governo.
Mediante o debate sobre as propostas – a serem apresentadas em evento de lançamento no dia 29 de abril -, espera-se contribuir para que o Estado, de forma articulada entre seus diferentes níveis (nacional, estadual e municipal) e com a sociedade, seja capaz de enfrentar adequadamente os desafios contemporâneos brasileiros, produto da interação entre problemas históricos e problemas emergentes na atualidade.
Este artigo foi publicado originalmente no blog Mais democracia Mais sustentabilidade do Estadão.
* Djonathan Gomes Ribeiro. Atuou na formulação da Agenda de Propostas do projeto “Pacto Federativo: Municípios para Agenda 2030” como analista de pesquisas e projetos no IDS Brasil (2020-2022). É pesquisador no Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP), bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo e mestrando na Faculdade de Saúde Pública da mesma universidade. O autor agradece a Guilherme Checco, coordenador de Pesquisas no IDS, pelos comentários, que contribuíram para o artigo.
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Notas
(1) IBGE. 2020. Aglomerados Subnormais 2019: Classificação Preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19. Nota Técnica 01/2020. Notas Técnicas. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ministério da Economia. maio. Rio de Janeiro. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_notas_tecnicas.pdf
(2) Incluídos no total o Distrito Federal e o Distrito Estadual de Fernando de Noronha, que foram considerados como Municípios pela PNSB 2017 (IBGE, 2020). Vide nota 3.
(3) IBGE. 2020. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2017: abastecimento de água e esgotamento sanitário/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101734.pdf
(4) Rede PENSSAN. 2021. VIGISAN: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf
(5) CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. Análise das consequências da nova distribuição do FPM. 2019. Disponível em: https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/ESTUDO%20As_consequencias_extincao_de_municipios.pdf
(6) GRIN, Eduardo José; ABRUCIO, Fernando Luiz. O que dizer das capacidades estatais dos municípios brasileiros em um contexto de descentralização de políticas?. XIII Congreso Nacional de Ciencia Política. Sociedad Argentina de Análisis Político y la Universidad Torcuato Di Tella, Buenos Aires. 2017. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Eduardo-Grin/publication/318917147_O_que_dizer_das_capacidades_estatais_dos_municipios_brasileiros_em_um_contexto_de_descentralizacao_de_politicas/links/5a91fcdf0f7e9ba4296db4a6/O-que-dizer-das-capacidades-estatais-dos-municipios-brasileiros-em-um-contexto-de-descentralizacao-de-politicas.pdf
(7) (8) FNP. 2022. Anuário Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil. Ano 17. Frente Nacional de Prefeitos. Disponível em: https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/971-multi-cidades-ano-17-2022
(9) CORRÊA, Vanessa Petrelli; DWECK, Esther. Impactos do Teto de Gastos nos municípios. In: Economia Pós-Pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. Ed. Autonomia Literária . 2020. pp. 128-141. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/17101.pdf
(10) FRENTE NACIONAL DE PREFEITOS. G100 – Municípios Populosos com Baixa Receita per Capita e Alta Vulnerabilidade Socioeconômica. 2018. Disponível em: https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/publicacoes/item/730-g100-edicao-2018
(11) GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Progressividade Tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão 2190. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília – Rio de Janeiro. 2016. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2190.pdf
(12) IDS Brasil et al. Mesa 2 – Estado brasileiro e reforma administrativa: Qualidade das políticas públicas à luz da Agenda 2030. Seminário Federalismo e Cooperação: Desafios da gestão integrada e sustentável. Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TcdOuNOMLbE&list=PLthOcvUhAzhs3ruJ1O-R4vL7UZaISxFud&index=5
(13) SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição nº 188, de 2019. (Pec do Pacto Federativo). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139704
(14) CHADE, Jamil. 2020. Brasil vive erosão da democracia e asfixia do espaço cívico, revelam dados. Notícias. Uol. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/03/nao-e-papo-de-comunista-a-democracia-esta-de-fato-encolhendo-no-brasil.htm
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