por Ana Trigo*
No dia 12 de setembro, a presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, finalmente liberou o julgamento da ação que pede a descriminalização do aborto. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 foi apresentada pelo PSOL em 2017. Mesmo com a liberação da ministra, que é relatora da ação, a data da sessão ainda não foi marcada. Rosa Weber deve se aposentar ainda neste mês de setembro e cogita votar de forma virtual caso a corte não consiga votar a pauta antes de sua saída.
O aborto no Brasil é permitido por lei em três casos: risco de morte à gestante, feto anencéfalo e gravidez resultante de estupro. A ação movida pelo PSOL questiona os artigos 124 (provocar aborto em si mesma ou permitir que outrem lho provoque) e 126 (provocar aborto com o consentimento da gestante, com pena de reclusão de um a quatro anos) do nosso Código Penal, que data de 1940, alegando que violam direitos fundamentais das mulheres. Além disso, pede a descriminalização do procedimento realizado, sob qualquer pretexto, nas primeiras 12 semanas de gestação.
Apesar da aparente decisão favorável por parte da ministra relatora, não há garantias de que a ação seja aprovada. Ofensivas contra o aborto legal acontecem em todas as esferas dos poderes executivos, legislativos e judiciários Brasil afora. Em fevereiro deste ano, a justiça do Piauí nomeou uma defensora pública para atuar em nome do feto da menina de 12 anos grávida pela segunda vez por conta de estupros seguidos e sofridos dentro de sua própria família. Na legislação brasileira não está previsto dispositivo semelhante, mas o que foi chamado de “anomalia jurídica” criada pela justiça piauiense deu certo: o aborto foi negado assim como ocorreu na primeira gravidez da menina, também resultante de estupro que também foi praticado por um familiar.
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Grupos de juristas ligados a movimentos religiosos também se mobilizam em torno do que chamam de “defesa da vida”. Minha colega Manuela Löwenthal adiantou o tema neste Observatório Evangélico quando abordou sobre a ofensiva de uma associação de juristas identificada com o segmento evangélico. Em nota, assinada em conjunto com 40 pastores, todos homens, o grupo pretende pressionar os ministros do STF para que votem contra a ADPF 442.
Em torno da cruzada contra o aborto legal, evangélicos e católicos se unem de forma fervorosa. O estudo “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos” realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) mostra a influência de grupos católicos em prol das pautas conservadoras. Grupos esses capitaneados ou inspirados por Ives Gandra Martins. O jurista é fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR). De acordo com o site da entidade a “missão do IBDR é defender a verdade por meio da ciência jurídica, da filosofia, das humanidades e dos saberes técnicos e práticos por meio da promoção de um diálogo aberto, honesto e respeitoso entre as respectivas áreas de conhecimento a fim de avançar no conhecimento integral acerca do homem e sua relação com Deus e, consequentemente, sua vida em sociedade a partir de uma perspectiva cristã”.
O “diálogo aberto honesto e respeitoso” parece ficar só no texto institucional do site. Vejam este exemplo: no último dia 15, o IBDR e o partido Novo (que de novo só tem mesmo o nome) entraram com ação junto ao STF contra resolução do Conselho Federal de Psicologia que, entre outras coisas, proíbe os profissionais de induzir os pacientes a crenças religiosas ou a qualquer tipo de preconceito, e associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas.
Como não poderia deixar de ser, a atuação do IBDR também é forte contra o aborto legal. De acordo com o estudo do ISER, o instituto tem atuado em rede com outras associações jurídicas católicas em atividade no Brasil para tratar do tema sob uma perspectiva conservadora e religiosa.
Na esteira da IBDR está outra entidade muito atuante: a União Brasileira dos Juristas Católicos (UBRAJUC). A líder da instituição é a deputada e presidente da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto na Câmara, Chris Tonietto (PL-RJ). Uma das principais ativistas antiaborto do Congresso Nacional, a deputada é autora de vários projetos de lei contra o aborto legal, além de trabalhar ativamente pela aprovação do Estatuto do Nascituro. Ela também é uma das fundadoras do grupo católico ultraconservador Associação Centro Dom Bosco que, entre outras ações, tentou proibir a entidade Católicas pelo Direito de Decidir de usar “católicas” no nome.
Várias dessas entidades figuram como amicus curiae (expressão em latim que significa amigos da Corte, utilizada para designar uma instituição que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais) no processo da ADPF 442. O subsídio, no caso, é a defesa da criminalização do aborto inclusive nas situações já permitidas.
No Congresso, a pauta antiaborto tem forte atuação católica, religião de muitos dos deputados que compõem a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto. Mas evangélicos e católicos se unem em torno de uma agenda política cada vez mais conservadora e em detrimento dos direitos das mulheres. Defendem que, se aprovada, a ADPF 442 irá descriminalizar um ato contra o maior bem de todos que é a vida. Mas meninas brasileiras grávidas porque foram estupradas parecem não estar incluídas no conceito de “vida” desses grupos.
* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política – LAR/Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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