Chega nesta semana às livrarias de todo o país A vida nunca mais será a mesma – Cultura da violência e estupro no Brasil.
É o segundo livro da jornalista Adriana Negreiros, que estreou no mercado editorial em 2018, quando lançou a biografia de Maria Bonita, também pela editora Objetiva.
A obra editada agora reúne um conjunto de histórias de violência sexual, a começar por aquela vivenciada pela própria autora, no ano de 2003, contada em minúcias já a partir das primeiras páginas.
Os relatos vão além de uma descrição dos fatos revoltantes e repugnantes impostos às vítimas. Mostram também as várias camadas de danos disparados a partir dessas experiências de pavor, resumidos na frase-título do conteúdo que você lê agora, manifestada por uma das personagens reais do livro, que foi estuprada pelo próprio avô.
A publicação mostra ainda como a cultura do estupro, além de se apresentar como vexatória mazela social do Brasil, pode ter desdobramentos até mesmo eleitorais.
Confira na entrevista a seguir, feita com a autora do livro, a jornalista Adriana Negreiros.
Adriana, primeiramente eu gostaria que você falasse das razões que a levaram a escrever sobre um tema tão sensível, e, imagino, ainda mais delicado para você, que viveu uma apavorante história de violência sexual no início dos anos 2000, contada em perturbadora riqueza de detalhes nas páginas do livro. O que te moveu nesta jornada?
A violência sexual é um assunto urgente no Brasil, país cujas autoridades policiais registram, em média, 180 estupros por dia, de acordo com dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Destes, 82% têm como alvo as mulheres. O número seria eloquente por si só, mas deve-se lembrar que menos de 10% das vítimas denunciam a agressão.
Saber que, todos os dias, cerca de 180 pessoas sofrem estupro no Brasil já seria razão suficiente para escrever um livro sobre este tema. Mas havia ainda uma outra motivação decisiva, que é o fato de eu própria ter sido estuprada. O estupro aconteceu faz bastante tempo, em 2003, mas nem todos estes anos, nem a suposta maturidade (tenho hoje 46 anos), nem a mudança de país (agora vivo em Portugal) foram suficientes para me curar do pavor, da paralisia física e emocional, da vergonha.
Portanto, nesta jornada, moveu-me, para além de todos os sinceros motivos profissionais, o desejo pessoal de confrontar o pavor e a vergonha e, não tendo sido possível vencê-los, ao menos transformá-los em algo que pudesse trazer-me alguma satisfação.
Lembro que terminei a leitura do seu caso de violência com um respirar profundo, descompassado pelo teor do texto. Eu, podendo apenas teorizar sobre o ocorrido, me ponho a pensar em que transformações essa vivência provocou em sua vida dali em diante.
Foram muitas. Até a noite do estupro, sempre me orgulhei de ser uma mulher corajosa e impetuosa. Após o ocorrido, tornei-me cheia de medos. Se, antes, a valentia incentivava-me a querer conquistar as pessoas e o mundo, depois do ocorrido eu só quis trancafiar-me no meu apartamento e interagir o mínimo possível com quem quer que fosse — tanto que conto nos dedos das mãos as pessoas com quem me relaciono em um nível mais íntimo, seja familiar ou de amizade. A violência sexual é a materialização daquilo que o feminismo tanto denuncia: é próprio do patriarcado tentar privar as mulheres dos espaços públicos, das esferas de poder. Como se nos dissessem, melhor vocês não saírem do quarto e da cozinha — o que também não faz o menor sentido, pois a maioria dos casos de estupro ocorre dentro de casa.
Ao mesmo tempo, você diz que a escrita, embora sofrida, foi também de “muito alívio”. De que forma?
Por razões diversas, nunca havia conversado sobre o estupro com ninguém. Eu simplesmente não queria falar sobre isso. Escrever a respeito da violência e, pela primeira vez, “falar” sobre o assunto foi uma forma de pôr para fora sentimentos que tanto me angustiavam. Desabafar, dito de modo mais direto. De alguma maneira, ao escrever sobre o crime, consegui dar sentido à experiência. Não para extrair dela algo positivo, porque não acredito nessa baboseira de que tudo tem um propósito, mas para compreender como ela me afetou — e de que maneira posso, ao identificar a dimensão dos estragos que me foram causados, tentar reverter alguns deles.
O livro conta histórias de violência sexual ocorridas ao longo de vinte anos (1994 a 2014). Como foi essa coleta de casos, e, mais do que isso, que mulheres encontrou nesse processo? Algum ponto de convergência entre elas, que tenha chamado a sua atenção?
As redes sociais ajudaram-me a encontrar as mulheres. Em um primeiro momento, foi difícil encontrar quem topasse dar-me entrevista para o livro. Depois, a dificuldade foi outra, selecionar as personagens dentre tantas que me escreviam diariamente (o que é terrivelmente triste, porque prova como há muitas vítimas de violência sexual). Encontrei mulheres de todo o tipo que você possa imaginar, embora seja importante ressaltar que a violência sexual, como de resto todas as outras violências, atinge principalmente as mulheres negras e pobres.
Consegui identificar o ponto de convergência a partir de uma pergunta feita por uma das entrevistadas. Ela tinha curiosidade em saber se o estuprador dela — no caso, o avô — possuía alguma noção, ao violentá-la, de como estava estragando uma vida para sempre. O verbo que ela usou foi outro, com dupla conotação — fodendo. Dei-me conta de que essa era uma pergunta que também me inquietava, como de resto às outras mulheres. É uma certa incompreensão. Gente, por quê? Por que fizeram isso? Por que nos marcaram desse jeito para sempre? E aí vem uma pergunta perigosa e terrivelmente cruel, mas que, em algum momento, por mais conscientes das opressões de gênero que sejamos, todas nós nos fazemos: o que eu fiz para merecer isso?
Portanto, o ponto de convergência talvez sejam dois, um tanto dialéticos: a incompreensão e a dor.
Sabemos que esse tipo de violência e suas múltiplas manifestações, longe de serem casos isolados, são o cotidiano de milhões de mulheres, sobretudo no atual momento do Brasil, governado por um presidente que inclusive já zombou do assunto (em um dos casos mais notórios, numa discussão com a então colega de Parlamento Maria do Rosário). Você considera que o país hoje é ainda mais perigoso para as mulheres? De que forma?
Infelizmente, penso que sim. No livro, eu analiso, inclusive, como o atual presidente valeu-se da cultura do estupro para ganhar adesão. Ao reforçar um pensamento vigente em certos setores de que as mulheres estão aí para serem estupradas, conquistou votos de quem pensa como ele — e viu-se representado na própria misoginia. Representado no discurso e na prática (daí os perigos). A frase “não te estupro porque você não merece” é horrenda, mas eficiente no sentido de expressar, com perfeição, a cultura do estupro presente na sociedade brasileira — nas piadas “politicamente incorretas” que tanto sucesso fizeram nas duas últimas décadas, na romantização das relações abusivas em músicas, filmes e novelas, na publicidade sexista que trata as mulheres como objetos para deleite dos homens. O combate à violência sexual, para ser eficiente, precisa ser feito em águas profundas, agindo em nossa mentalidade coletiva.
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