Paulo Peres *
O Rio Grande do Sul vai às urnas neste ano num quadro político especialmente interessante. Pela primeira vez, desde a aprovação da emenda da reeleição, um governador tem reais chances de ser reconduzido ao cargo para um segundo mandato consecutivo. De acordo com pesquisa realizada nos dias 2 e 3 de setembro, pelo Real Time Big Data, Eduardo Leite (PSDB) tem 31% das intenções de voto, contra 26% de Onyx Lorenzoni (PL) e 12% de Edegar Pretto (PT). Embora 11 candidatos estejam no páreo, apenas esses três ultrapassaram a casa dos 10%.
Considerando-se a margem de erro de 3%, Leite e Lorenzoni estão tecnicamente empatados, o que recomendaria alguma cautela a respeito do resultado final. Porém, três tipos de dados apontam para um cenário extremamente favorável à reeleição de Eduardo Leite. Outra pesquisa, realizada pelo IPEC, e divulgada no dia 2 de setembro, mostra uma distância consideravelmente maior entre os dois primeiros colocados: Leite aparece com 38% e Lorenzoni com 24%. Da mesma pesquisa do IPEC vem o segundo dado relevante: a simulação do segundo turno apontou a possível vitória do tucano por ampla margem de votos.
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O terceiro dado é de natureza estrutural. Tendo em conta os alinhamentos ideológicos, é mais provável que os votos do primeiro turno na centro-esquerda migrem para a candidatura de Eduardo Leite no segundo turno. Em outras palavras, os eleitores da centro-esquerda tendem a votar na centro-direita para evitar a vitória da direita, representada por Lorenzoni. Mesmo que no segundo turno os potenciais votos dos demais partidos de direita se somem ao eleitorado do PL, o resultado não será suficiente para ultrapassar a votação potencial do PSDB uma vez acrescido o apoio eleitoral da centro-esquerda e da esquerda.
Portanto, ao que tudo indica, o processo eleitoral se encaminha para um desfecho inusitado. Justamente o candidato que, desde sempre, posicionou-se contra o instituto da reeleição e que, por reiteradas vezes, declarou que não concorreria ao segundo mandato, poderá realizar o feito jamais alcançado pelos seus antecessores. E, para completar essa situação paradoxal, Leite quebrará o ‘tabu da reeleição’ devido ao voto da centro-esquerda, principalmente dos petistas.
O segundo aspecto de maior interesse desta eleição é a provável alteração, pela segunda vez consecutiva, do perfil ideológico que baliza a disputa pelo governo do estado. Desde a redemocratização, formou-se um alinhamento de competição bipolar que, após 1990, consolidou-se como uma oposição entre a centro-direita e a centro-esquerda. Até então dominada pelo PDT, a liderança da centro-esquerda foi conquistada pelo PT em 1994, partido que até hoje segue como a força dominante nesse nicho do eleitorado. A centro-direita, por sua vez, tornou-se objeto de disputa entre o PMDB e o PSDB, mas com ampla vantagem para os peemedebistas.
PublicidadeA simples conferência dos resultados eleitorais de 1982 a 2018 expressa essa estrutura bipolar da competição entre a centro-esquerda e a centro-direita. O PMDB/MDB esteve entre os dois partidos mais votados nas eleições de 1982, 1986, 1994, 1998, 2002, 2010 e 2014, sagrando-se vencedor em 1986, 1994, 2002 e 2014. O PSDB foi um dos dois mais votados em 2006, 2010 e 2018, tendo vencido em 2006 e 2018. Portanto, das dez eleições realizadas desde a retomada da democracia, o PMDB venceu quatro e o PSDB venceu duas, num total de seis vitórias da centro-direita.
Na centro-esquerda, o PDT esteve entre os dois mais votados em 1986 e em 1990, quando venceu. Já o PT foi uma das duas maiores forças eleitorais em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, alcançando o primeiro lugar em 1998 e 2010, quando chegou a conquistar o Palácio do Piratini logo no primeiro turno. Desse modo, os dois partidos da centro-esquerda tiveram três vitórias no período (a vitória restante foi obtida pelo PDS, em 1982).
Em suma, a competição entre a centro-esquerda e a centro-direita quase sempre foi uma disputa entre PT versus PMDB e PSDB. Em 2018, embora a competição tenha se mantido bipolar, ocorreu uma importante mudança no alinhamento ideológico dos protagonistas. Ecoando a radicalização à direita da eleição presidencial, a competição para governador desalojou o PT da posição de antagonista da centro-direita e, junto com ele, a própria centro-esquerda. Naquela eleição, mostraram-se mais competitivas e chegaram ao segundo turno as duas maiores forças da centro-direita – o PMDB, que tentava a reeleição de José Sartori, e o PSDB, que venceu a eleição com Eduardo Leite.
Rebaixado à terceira força partidária estadual, o PT luta agora em 2022 para recuperar a sua posição e, com ela, alçar a centro-esquerda novamente à condição de polo protagonista das eleições ao governo do estado. Já o PSDB e o PMDB, ao invés de reproduzirem o embate de 2018, decidiram juntar forças e lançaram-se à corrida eleitoral numa chapa unificada. Esse lance estratégico, entretanto, abriu espaço para a retomada da direita como uma força competitiva no estado, condição perdida em 1986. Deste então, nenhum partido de direita havia conseguido recuperar o território perdido para o PMDB/MDB e, em alguma medida, para o PSDB. Candidatando-se pelo partido de Bolsonaro, e com uma campanha declaradamente vinculada ao presidente, Onyx Lorenzoni vem conseguindo capturar o que sobrou da radicalização à direita do eleitorado em 2018.
Desse modo, o padrão bipolar da competição que prevaleceu até 2018, entre a centro-esquerda (PT) e a centro-direita (PMDB e PSDB), foi alterado por um perfil caracterizado pelo confronto entre dois partidos de centro-direita (PMDB x PSDB). Em 2022, uma nova alteração está em curso, agora, entre a centro-direita (PSDB/MDB) e a direita (PL).
Nesse cenário, o PT se agarra à esperança de vincular a campanha estadual de Edegar Pretto à nacional, para atrair os eleitores não-petistas de Lula; afinal, os eleitores petistas já votam, quase incondicionalmente, no PT. De fato, a mesma pesquisa do Ipec mostra que as intenções de voto em Lula, no RS, estão em torno de 42% contra 34% dos que pretendem votar em Bolsonaro. No entanto, até o momento, a estratégia não surtiu efeitos e o partido corre o risco de ter votação menor do que a recebida em 2018, quando Rossetto obteve cerca de 18%.
Igualmente interessado em nacionalizar a campanha, Lorenzoni também se agarra à esperança de se vincular a Bolsonaro para reacender o antipetismo, o anticomunismo e o moralismo religioso. Tal estratégia, obviamente, erra o alvo, pois o principal adversário é um tucano – e no segundo turno, certamente, os ataques ao ex-governador tenderão a se intensificar. Além disso, assim como no nível nacional, o tema de maior interesse do eleitorado no Rio Grande do Sul é a economia, um dos tetos de vidro do governo nacional ao qual Lorenzoni serviu fielmente.
Leite segue estratégia distinta. Em 2018, sua campanha se aproximou de Bolsonaro; agora, sua candidatura procura se afastar do presidente. Aproximar-se de Lula, por sua vez, é uma operação que exige refinada habilidade, pois tal movimento pode afastar os eleitores mais conservadores que garantirão o seu passaporte para o segundo turno. Mas, no segundo turno, será indispensável contar com os votos petistas, sem, no entanto, perder os conservadores do primeiro turno.
Para evitar armadilhas, a campanha de Leite foge do debate nacionalizado e foca nas questões locais. Os seus programas e discursos dão ênfase às políticas realizadas pelo seu governo com vistas à recuperação financeira do estado e, apoiando-se nisto, aponta para a necessidade do segundo mandato para continuar as mudanças. Consideradas mercadistas pela centro-esquerda e esquerda, as reformas e propostas de Leite só não afugentarão esse eleitorado crucial no segundo turno porque, para esse nicho ideológico, a vitória da direita provocaria um dano muito maior.
Enfim, a possível grande mudança na eleição para governador será uma continuidade. Se vencer, Leite dará continuidade à sua agenda, mas graças à superação do “tabu da reeleição”. Por outro lado, a grande continuidade representará substancial mudança. Mantendo o seu padrão bipolar e bipartidário, a competição para governador terá como polos o PSDB e um novo partido, o PL. Além disso, terá uma oposição ideológica não mais entre centro-esquerda e centro-direita, como ocorreu até 2018, e tampouco entre dois partidos da centro-direita, como naquela última eleição, mas sim entre a centro-direita, com a dobradinha PSDB/MDB, e a direita, com o PL de Lorenzoni, Bolsonaro e Valdemar da Costa Neto. Enquanto isso, o PT terá de ir em busca do tempo – e do eleitorado – perdido, ou seja, preparar novas lideranças.
* Paulo Peres é doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é diretor do Núcleo de Estudos sobre Partidos e Democracia.
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.
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