Rio de Janeiro. Início da década de 70. Rua São Clemente, a poucos metros da Embaixada dos Estados Unidos, um adolescente volta do colégio para a mansão onde vive com a família. Depara-se com o escritório e o quarto do pai trancados por dentro. Não havia mais ninguém ali. Quando consegue abrir a porta, encontra uma confusão de papéis revirados por todos os lados. A cena faz lembrar os fatos narrados no filme “Ainda estou aqui”, baseado na história do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva, cassado e morto pela ditadura militar.
Esse caso, no entanto, foi vivenciado por outra família, a do empresário Celso da Rocha Miranda, sócio da Panair quando a empresa em 1965 foi fechada ao arrepio da lei pela cúpula militar que mandava no país. Os militares alegaram que a maior companhia do país não tinha condições financeiras nem legais para voar. Algo que não correspondia à verdade, como se comprovou depois.
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O jovem, na época, é o hoje economista Rodolfo da Rocha Miranda, que, depois de recuperar o comando da empresa, preserva a memória da Panair, do pai, do sócio Mário Wallace Simonsen, dos demais acionistas e dos 5 mil funcionários que perderam o emprego da noite para o dia.
Em julgamento na última sexta-feira (29), em Brasília, a Comissão da Anistia declarou que todos eles foram perseguidos politicamente e pediu perdão em nome do Estado brasileiro aos personagens envolvidos nesse episódio e também aos seus familiares. A grande maioria dos anistiados não viveu para ver a conclusão deste capítulo da história. A medida, é bom ressaltar, não gera despesa aos cofres públicos: ninguém receberá indenização ou pensão.
Resistência
Para Rodolfo, a reparação simbólica vem em um momento-chave para o país. Ele traça paralelo entre a perseguição da ditadura a Rubens Paiva e à sua família. “O filme foi lançado numa hora muito propícia, com a tentativa de golpe agora. Mostra a resistência da mulher dele. Na Panair, também tivemos a resistência de 5 mil pessoas, que, mesmo sem qualquer contribuição financeira, continuaram a se reunir anualmente por mais de 50 anos”, diz o empresário.
Para o jornalista Daniel Leb Sasaki, autor do livro Pouso Forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar (Editora Record), o efeito pedagógico da retratação é um alerta para os empresários brasileiros que flertaram com o golpe nos últimos anos. Investigações preliminares indicam que produtores rurais, em especial, fomentaram acampamentos pró-intervenção militar que culminaram nos atos de 8 de janeiro de 2023.
“Nós precisamos conhecer a história. Não foram poucos os empresários que entraram nesse discurso de golpe nos últimos tempos. O caso Panair está aí para alertar. Eram dois dos homens mais ricos do país [Celso e Mário Wallace Simonsen]. Quando a lei não vale nada, ninguém está imune. Esse episódio da Panair é emblemático contra o autoritarismo e qualquer discurso de ataque à lei, à Constituição”, observa o escritor, que trabalha no roteiro de um filme ficcional sobre o fechamento da empresa.
Perseguidos e apoiadores
A Comissão Nacional da Verdade foi a primeira a reconhecer que houve perseguição aos empresários que não apoiaram o golpe militar, a exemplo de Simonsen e Rocha Miranda. O colegiado dedicou um capítulo às empresas perseguidas pela ditadura. E outro, bem mais farto, aos grupos econômicos que ajudaram a bancar o mesmo golpe de 1964. “O prejuízo causado com a quebra da Panair é incalculável”, diz o advogado Wilson Quinteiro, responsável por defender a reparação dos funcionários.
Essas duas pontas – empresários beneficiados e prejudicados – se encontravam em movimento circular. “Houve participação de concorrentes no fechamento da Panair. Isso está provado. Tentaram revestir com ar de legalidade o que faziam. Usavam documentos falsificados em todas as ações contra a companhia, que, desde o início, provava ter condições financeiras e legais para voar. Houve um clamor popular, mas os militares não voltaram atrás.”
Prossegue o jornalista: “O Celso deixou gravado o que considerava um dos motivos de terem fechado a Panair. Ele visitava com frequência JK em Portugal. Alguns militares achavam que o Celso seria um pombo-correio. Por isso, quando chegava ao Brasil, era assaltado, levavam documentos e câmeras dele. Achavam que JK, do exílio, estaria organizando um contragolpe”, revela Daniel.
Esmagados pela ditadura
Além de amigos de Juscelino, os dois empresários tinham contato com João Goulart, presidente deposto pelos militares em 1964. Rodolfo da Rocha Miranda lembra que o sócio de seu pai na Panair era considerado na época o homem mais rico do Brasil. Sua fortuna incluía a maior exportadora de café do país e a TV Excelsior. Assim como outros negócios dele, ambas também foram esmagadas pela ditadura.
“O Simonsen morreu um mês depois da intervenção na Panair. Não aguentou. Perdeu tudo o que tinha. O meu pai manteve outras empresas. Mas durante anos teve de lutar para provar que a responsabilidade pelo fechamento não era dele”, afirma.
Um dos patrimônios de Rocha Miranda, a Ajax Corretora de Seguros era a maior seguradora da América do Sul. Rodolfo conta que, no final anos 70, o então presidente, General Ernesto Geisel pediu ao seu sucessor, João Baptista Figueiredo, que costurasse um acordo com o empresário. “Não houve acordo. Eles queriam que ele nunca mais fizesse reivindicações voltasse a falar do fechamento da Panair. Mas o meu pai recusou. Disse que aquela história não era dele. Mas de todos os acionistas e funcionários também”, relata o atual dono da Panair.
Por outro lado, um número incalculável de empresas desempenhou algum tipo de papel no apoio ao golpe militar de 1964, como instituições financeiras, os setores industrial, agrário e de mídia e empreiteiras. O apoio se dava de diversas maneiras, por meio de financiamento, fornecimento de recursos e suporte ideológico. Entre eles, grandes proprietários de terras e associações rurais; fábricas e grupos industriais que se beneficiaram de políticas econômicas que favoreciam a industrialização; bancos que cediam recursos para sustentar a ditadura; veículos de comunicação que contribuíram para legitimar o golpe e desacreditar o governo deposto. Pelo menos 12 grandes empresas são alvo do Ministério Público Federal em investigações por colaborarem com a ditadura.
Alento
Em 1984 o Supremo Tribunal Federal (STF) deu o primeiro ganho de causa à Panair, reconhecendo que União tentou cobrar dívidas já pagas durante o processo de falência. O patrimônio, no entanto, já havia sido dilapidado em meio à sucessão de decretos específicos para atingir a aérea e apropriação indevida de bens, inclusive vários aeroportos construídos por ela.
Atualmente o mobiliário e os documentos que restaram da Panair fazem parte do acervo cedido para o Museu Histórico Nacional. Os herdeiros ainda buscam indenização na Justiça em processos que se arrastam há anos. Parte dessa me memória está disponível no site da empresa.
Para Daniel Leb Sasaki, não há pedido de perdão do Estado brasileiro, como a declarada pela Comissão de Anistia, que repare as perdas causadas aos empresários, aos trabalhadores e ao país como um todo. “A anistia pelo menos dá alento às pessoas”, considera. Rodolfo da Rocha Miranda completa o raciocínio. “Hoje podemos divulgar a história real, mostrar as mentiras informadas na época. Temos de mostrar a realidade. Temos de esclarecer os fatos para que a história não se repita. Senão, as pessoas acham que tudo isso é normal”, ressalta.
Assista ao pedido de desculpas da Comissão da Verdade aos funcionários e acionistas da Panair:
Caso Panair: comissão aprova anistia política para 5 mil funcionários da empresa aérea