Vinicius do Valle *
Recentemente, o Observatório Evangélico teve acesso a uma pesquisa realizada pela organização Democracia em Xeque, a qual mostra uma relação entre o discurso religioso – sobretudo evangélico – e o discurso antivacina no Brasil. E, mais do que uma utilização de argumentos que relacionam religião e críticas às vacinas, os dados mostram a existência de uma verdadeira intersecção entre o movimento antivacina e certos movimentos religiosos. Esse é um fato que levanta preocupação, pois os riscos da resistência à vacinação são enormes: a baixa taxa de vacinação em uma sociedade pode fazer com que doenças se espalhem com mais facilidade, aumentando a chance de mutações mais perigosas dos vírus e até fazendo com que doenças controladas voltem a circulação ampla.
Mas o que faz com que religiosos encampem o discurso antivacina?
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que os discursos negacionistas de todos os tipos ganharam força nos últimos anos. As redes sociais viraram ambientes favoráveis para a reunião e organização de pessoas com opiniões radicalizadas, favorecendo, entre outros, a difusão de teorias conspiratórias que negam a eficácia de vacinas e medicamentos. Essas teorias, via de regra, associam a vacinação a diversas falsas narrativas que possuem, como núcleo comum, a ideia de que haveria um grupo secreto ou desconhecido de poderosos que espalharia remédios e vacinas ao conjunto da população para assumir o controle da sociedade ou diminuir o contingente populacional do planeta. Para piorar, nos últimos anos políticos populistas e de extrema direita perceberam que poderiam obter ganhos políticos ao se mostrarem receptivos e/ou adeptos a esses discursos. E ao incorporarem alguns de seus elementos, acabaram por espalhar ainda mais esses devaneios, dando-lhes certa legitimidade pública, além de os aproximarem de uma identidade política ou ideológica. É o caso, por exemplo, de Bolsonaro, que, em meio à pandemia de Covid-19, por diversas vezes fez manifestações públicas em que mostrava resistência à vacinação, além de espalhar falsas teorias conspiratórias. Chegou, inclusive, a dizer que a vacina contra Covid poderia causar Aids a quem a recebesse.
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Sabemos que os evangélicos são o grupo religioso que mais apoiou Bolsonaro no último período. Nas eleições de 2022, segundo o Datafolha, 69% dos votos válidos entre evangélicos foram para Bolsonaro, número bem acima de outros segmentos religiosos. É possível que a identificação de parte importante do segmento evangélico a Bolsonaro seja um dos elementos que explica a difusão do discurso antivacina entre esse agrupamento religioso. Vale dizer que, junto ao voto no ex-presidente, há todo um ecossistema informacional em torno do bolsonarismo em que tais discursos têm maior circulação.
Mas há ainda outro elemento que serve de pano de fundo para que teorias conspiratórias relacionadas à vacinação tenham aderência em evangélicos, principalmente de vertentes pentecostais. Me refiro especialmente a uma característica teológica desse grupo: pentecostais dão muita ênfase para a discussão sobre o fim dos tempos, chamada também de escatologia. Grosso modo, a partir da leitura do livro de apocalipse, interpretam que, como sinal de que o final dos tempos estaria próximo, a sociedade estará moralmente corrompida, haverá grande degradação moral e teremos eventos naturais e pestes. Além disso, os demônios tentarão enganar e controlar os servos de Cristo, e os poderosos imporão práticas a que o cristão deve resistir. Muitas das mudanças sociais recentes são lidas por evangélicos pentecostais como sinal da proximidade do fim dos tempos, das mudanças climáticas à mudança de costumes relacionados aos papeis de gênero e ao exercício da sexualidade. E, mais do que isso, as ideias de que há grupos secretos e demoníacos no controle do mundo se encaixam perfeitamente nessa ótica. Para que a vacinação da população seja lida dentro dessa chave, não são muitos os passos necessários.
Qualquer campanha de conscientização precisa levar em consideração esses pontos. Ao que parece, para que a boa informação circule, é necessário reestabelecer uma cultura de confiança, algo cada vez mais raro entre nós.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
** Este texto foi publicado originalmente na Carta Capital.
* Vinicius do Valle é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).
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Ué, mas então que não se vacinem. Não há força maior do que a palavra do pastor pra essas pessoas. Eu sei porque convivo com uma evangélica, minha melhor amiga. É difícil. Tudo é porque “Deus quer”. Então, não precisa vacinar, porque Deus não vai deixar que a pessoa pegue a doença, ou, se pegar, foi Deus quem quis. Assim fica impossível de reverter o pensamento. O problema é que cada pastor faz o que quer, não há uma linha de pensamento como orientação às igrejas e aos pastores, um mínimo que seja. Se os evangélicos conseguem manter um convívio com pessoas que não sejam evangélicas ainda poderão ao menos ouvir outras ideias, mas acabam por conviver apenas entre si, daí fica impossível mudar qualquer “ensinamento” estúpido.