Luiz Alberto dos Santos *
Em 1º de novembro de 2021, o ministro do Trabalho e Previdência editou a Portaria MTP nº 620, publicada no Diário Oficial na mesma data, em edição extra, e que, em seu art. 1º, “caput”, define que “é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal, nos termos da Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995.”
Apesar dessa redação abrangente, e aparentemente “protetiva” do direito à não-discriminação, o real objetivo da norma é outro.
Nos parágrafos que integram o art. 1º e demais, a Portaria comete grave ilegalidade, e até mesmo ofensa à Constituição, ao proibir, na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação, certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez, e considerar prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação.
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Embora a portaria veicule regras orientadoras, em seus art. 2º e 3º, de que o empregador deve estabelecer e divulgar orientações ou protocolos com a indicação das medidas necessárias para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho, incluindo a respeito da política nacional de vacinação e promoção dos efeitos da vacinação para redução do contágio da covid-19, e a possibilidade de que os empregadores estabeleçam políticas de incentivo à vacinação de seus trabalhadores, e que possam oferecer aos seus trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela covid-19 ficando os trabalhadores, neste caso, obrigados à realização de testagem ou a apresentação de cartão de vacinação, o que realmente tem relevo na Portaria, e lhe confere o poder normativo pretendido, é a pretensão de impedir que os empregadores adotem medidas disciplinares no caso de empregados que se recusem a submeter-se à vacinação contra a Covid-19, ou mesmo exigir a comprovação dessa vacinação, para fins de admissão.
Essa medida, que aparentemente visa a proteção dos empregados contra “abuso do empregador” e proteção de suas liberdades individuais e do direito ao trabalho, mostra-se incoerente, pois, ao passo em que reconhece a relevância das medidas necessárias para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho, incluindo a respeito da política nacional de vacinação e promoção dos efeitos da vacinação para redução do contágio da covid-19, e a necessidade de que o empregador assegure a preservação das condições sanitárias no ambiente de trabalho, acaba por afastar o mais importante, eficiente e necessário item de proteção à saúde, tanto do próprio trabalhador, quanto de seus colegas de trabalho, que é a vacinação.
A CPI da Covid mostrou, à farta, a gravidade da pandemia e a negligência do governo no seu enfrentamento. Se a vacinação não houvesse sido protelada pelo Ministério da Saúde, em sua política negacionista, em que colocou como prioridade o “tratamento precoce” e a desinformação da população, milhares de vidas teriam sido salvas, e medidas de retomada das atividades econômicas poderiam ter sido antecipadas.
Entre as várias iniciativas adotadas em decorrência da gravidade da situação, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.187, de 15 de julho de 2021, que “dispõe sobre a autorização para que estruturas industriais destinadas à fabricação de vacinas de uso veterinário sejam utilizadas na produção de insumos farmacêuticos ativos (IFA) e vacinas contra a covid-19 no Brasil”. Aprovou a Lei 14.200, de 2 de setembro de 2021, resultante de Projeto de Lei de nossa Autoria, que foi descaracterizada com vetos presidenciais, que “altera a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 (Lei de Propriedade Industrial), para dispor sobre a licença compulsória de patentes ou de pedidos de patente nos casos de declaração de emergência nacional ou internacional ou de interesse público, ou de reconhecimento de estado de calamidade pública de âmbito nacional”.
E, sobretudo, já em 2020, o Congresso aprovou a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Em seu art. 3º, essa lei prevê que para enfrentamento da emergência de saúde pública Covid-19, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras medidas, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas, entre elas, o uso obrigatório de máscaras de proteção individual, como definido pela Lei nº 14.019, de 2 de julho de 2020.
Todas essas medidas adotadas pelo Congresso se inserem no campo das medidas de proteção e segurança coletiva, em face da grave situação produzida pela pandemia, que ceifou, até novembro de 2021, quase 610.000 vidas em nosso país.
Ora, se o caput do art. 6º da Constituição assegura, entre os direitos sociais, o direito ao trabalho, ele também assegura, a todos, o direito à saúde, e esse direito só se concretiza com o respeito às normas sanitárias de proteção coletiva, inclusive no ambiente de trabalho. Estar vacinado é, portanto, o mínimo que se pode exigir de quem frequenta, compulsoriamente, ambiente de trabalho, em benefício não apenas seu, mas de todos os demais que no mesmo ambiente operam, reduzindo os riscos de contágio.
Ademais, as normas editadas pelo MTP, em sua competência normativa, devem se sujeitar ao disposto no art. 7º, inciso XXII da CF, que prevê como direito do trabalhador a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Uma norma que, em lugar de reduzir tais riscos, os amplifique, é intrinsecamente nula.
Do mesmo modo, o Estado é impedido de adotar medidas que contrariem o art. 196 da Carta Magna, que assegura a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que “dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências”, prevê em seu art. 3º, em consonância com a Lei nº 13.979, que o Ministério da Saúde elaborará Programa Nacional de Imunizações, “que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”, as quais “serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.”
O fato de o governo Bolsonaro, pelo seu caráter negacionista e negligente, não ter declarado a vacinação compulsória, não pode servir de motivo a que o Ministro do Trabalho e Previdência – um dos indiciados pela CPI da Covid, em razão de suas ações e omissões, inclusive disseminando informações falsas sobre a doença – adote, sem base legal, medida que contraria o sentido da norma legal, que prevê a vacinação como parte do Programa Nacional de Imunizações, e impede tanto que o empregador exija a comprovação a vacinação para fins de admissão, quanto para evitar a demissão por justa causa.
Nos termos da CLT, em seu art. 482, constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador, a “incontinência de conduta ou mau procedimento” ou a prática de “ato de indisciplina ou de insubordinação”. Não é preciso grande esforço de interpretação para se concluir que, se o empregado não cumpre a determinação patronal, quanto à exigência de vacinação, estará praticando ato tão ou mais grave que a desídia no desempenho das respectivas funções ou a embriaguez habitual ou em serviço, colocando em risco os seus colegas em face da sua negligência.
E, se tal situação daria, nos termos supra referidos, motivação à demissão, mais ainda o será quanto à admissão no emprego.
Se o art. 168 da CLT prevê que é obrigatório exame médico, por conta do empregador, nas condições nele estabelecidas e nas instruções complementares a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, na admissão do empregado, admissão, a pandemia reclama que a condição de saúde, previamente aferida para fins de admissão, seja mantida após a contratação, e a vacinação é o meio que, nesse contexto, confere a maior segurança possível, ao lado da adoção das medidas profiláticas, como o uso de máscaras. Ignorar essa correlação é conferir autorização para que seja assegurado o “direito de infectar”, como bem destacou o jornalista Josias de Souza em sua coluna de 2 de novembro de 2021.
Além disso, o próprio Ministério Público do Trabalho, no Guia Técnico Interno Sobre Vacinação da Covid – 19, editada pelo seu Grupo de Trabalho Nacional (GT Covid- 19) em 28 de janeiro de 2021, assevera que entre as consequências lógicas que defluem da Tese de Repercussão Geral n. 1.103 do Supremo Tribunal Federal, das normas pertinentes à saúde pública, da legislação trabalhista e da inclusão das vacinas contra a Covid-19 PNOVC/MS e no Plano Nacional de Imunização (PNI), estão a de que “a vacinação é uma política pública de saúde coletiva que transcende os limites individuais e das meras relações particulares, sendo um direito-dever também para os trabalhadores, de forma que, uma vez observados os elementos delineados pelo STF, os princípios da informação e da dignidade da pessoa humana, entre outros, incumbe ao trabalhador colaborar com as políticas de contenção da pandemia da covid-19, não podendo, salvo situações excepcionais e plenamente justificadas (v.g., alergia aos componentes da vacina, contraindicação médica, estado de gestação), opor-se ao dever de vacinação” e que “a recusa injustificada do trabalhador em submeter-se à vacinação disponibilizada pelo empregador, em programa de vacinação previsto no PCMSO, observados os demais pressupostos legais, como o direito à informação, pode caracterizar ato faltoso e possibilitar a aplicação de sanções previstas na CLT ou em estatuto de servidores, dependendo da natureza jurídica do vínculo de trabalho.” E, ainda, que “diante da recusa, a princípio injustificada, deverá o empregador verificar as medidas para esclarecimento do trabalhador, fornecendo todas as informações necessárias para elucidação a respeito do procedimento de vacinação e das consequências jurídicas da recusa” e, “persistindo a recusa injustificada, o trabalhador deverá ser afastado do ambiente de trabalho, sob pena de colocar em risco a imunização coletiva, e o empregador poderá aplicar sanções disciplinares, inclusive a despedida por justa causa, como ultima ratio, com fundamento no artigo 482, h, combinado com art. 158, II, parágrafo único, alínea “a”, pois deve-se observar o interesse público, já que o valor maior a ser tutelado é a proteção da coletividade”.
Trata-se de tema que tem amplas repercussões, e que não é monopólio do Brasil, apesar das políticas do atual governo. Nos EUA, onde ainda há forte resistência à vacinação, fruto da política negacionista adotada pelo ex-presidente Trump, empresas e hospitais têm demitido trabalhadores por se recusarem a aceitar a vacinação. No Reino Unido, há ainda 22% de profissionais de saúde que se recusam a receber a vacina contra covid-19. E só em abril de 2022 será obrigatória a vacina para quem trabalhar no National Health Service – NHS, sob pena de demissão. Enquanto isso, há uma terceira onda surgindo, e o número de mortes diárias, lá, é o mesmo que temos aqui nas últimas semanas (média de mais de 290). E isso tendo já 68% da população recebido as duas doses (aqui, cerca de 50% apenas). A flexibilização das regras de distanciamento, máscaras e mesmo a retomada do ensino presencial, e o enfraquecimento das medidas de prevenção e contenção do vírus, com a retomada ampla do trabalho presencial, poderá ter efeito desastroso sobre a saúde pública, com a elevação de casos de infecção e mortes.
Assim, a portaria em tela é ilegal, imoral e contrária ao interesse público, exorbitando o poder regulamentar, mas até mesmo operando em sentido contrário à capacidade normativa do ministro de Estado, em gritante desserviço ao trabalhador, à sociedade e à economia do País. Por isso, deve ser de imediato sustada a Portaria MTP nº 620, de 1º de novembro de 2021, e o Congresso Nacional tem a responsabilidade de apreciar e aprovar proposições nesse sentido.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
* Consultor legislativo do Senado, advogado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais; Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da PR (2003-2014). Professor colaborador da Ebape/FGV. Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.
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