Para início de conversa, quando as mazelas das grandes cidades brasileiras são tema de debate, algumas perguntas se tornam inevitáveis, como as que se fazem adiante.
Sendo o tráfico de drogas ilegais um gravíssimo delito, o que justificaria a existência da cracolândia no maior centro urbano da América Latina?
Como explicar o seu vertiginoso crescimento e a sua tão longa permanência no riquíssimo centro histórico e cultural de São Paulo?
Todos sabem onde se concentram os usuários. É também público e notório que os usuários não se concentram senão justamente onde estão os fornecedores de drogas.
Onde estão os agentes dos diversos órgãos de Segurança Pública responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas? Só eles não sabem onde estão os traficantes ou será que se tornaram reféns da corrupção?
Não seria melhor, em tais circunstâncias, que se autorizasse a venda dessas drogas na feira livre? Ao menos, assim, esse mercado não alimentaria mais a corrupção policial. E, além disso, não haveria mais o estímulo ao conhecido fetiche dos jovens em relação a tudo que é proibido. Só por isso muitos trilham o caminho das drogas.
E não venham as autoridades do Estado repetir a desculpa esfarrapada de que pouco podem fazer em razão das limitações de suas competências, visto que a atribuição de vigilância das fronteiras terrestres e portuárias seria da Polícia Federal. Ora, se a droga não poderia entrar e, ainda assim, ingressa no território nacional, em razão de falha nos serviços de policiamento federal, as forças estaduais de segurança haveriam de coibir rigorosamente a sua circulação interna, de modo que a inércia da PF não tem o condão de justificar a omissão da Segurança Pública local.
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Uma das causas evidentes dessa desordem é a redução numérica e qualitativa dos organismos de segurança pública imposta pela propalada política de contenção de despesas públicas. Tudo para garantir a implementação da teoria neoliberal do chamado Estado-mínimo. O trágico resultado disso já deveria ter sido suficiente para comprovar que o Estado deve ter o tamanho das necessidades populares, especialmente no que se refere à segurança pública.
Acontece que hoje os órgãos estaduais de polícia contam com dez vezes menos agentes por número de habitantes do que há trinta anos. E esse quadro não se reverte justamente pela deliberada e criminosa omissão de governantes.
Quem é que tendo vivido aqueles tempos, em que o orçamento público , diga-se de passagem, era muito menor, não testemunhou que a Capital do Estado mais populoso do país já foi um agradável ponto turístico, onde os próprios munícipes e os visitantes podiam contemplar seus monumentos artísticos, centros históricos e culturais, praças, igrejas, ruas mais famosas e estabelecimentos comerciais tranquilamente, não só durante o dia, mas também à noite e até para além da madrugada? Tempos em que se ouvia com muita frequência: São Paulo não para!
Tempos em que a ação dos delinquentes se resumia a bater carteira nas tumultuadas praças públicas, fato que já acarretava considerável movimentação policial, depois de uma multidão bradar em alta voz: Pega ladrão. Época em que raramente se sabia de um assalto ou um homicídio, pois quando um gravíssimo e amedrontador crime desses era cometido, havia grande comoção popular.
Apenas para localizar temporalmente a mudança, há trinta anos um professor podia lecionar no centro histórico da cidade até às dez horas da noite, andar por um quarteirão inteiro, atravessar uma grande praça até o estacionamento de seu veículo ou um ponto de transporte coletivo, sem ser incomodado. E vários estabelecimentos comerciais ainda se encontravam a essa hora em normal funcionamento, com trabalhadores e estudantes indo e vindo incessantemente.
Hoje, não é mais possível andar pelas calçadas sem o risco de cair num bueiro sem tampa (inúmeras são furtadas e não repostas), sem tropeçar em molambos e sem sentir o odor de doenças medievais, urina e fezes em todo canto. O centro da cidade transformou-se em lugar propício para propagação de enfermidades infectocontagiosas de toda ordem. Um lugar cada vez mais hostil à vida humana civilizada.
Não é mais possível contemplar a beleza cultural, arquitetônica e histórica da cidade sem que o turista seja cercado por uma legião de supostos mendigos, de dia sob o disfarce de pedintes e, à noite, verdadeiros delinquentes, autores de furtos, assaltos e outros crimes até mais violentos, conforme o grau de dependência química e o tempo de abstinência de cada um deles.
Quantos estabelecimentos não faliram ou fecharam? Suas fachadas passaram a não valer mais por sua beleza e pelos sinais de propaganda, mas por estranhos vagantes ali postados a assustar a freguesia.
Aliás, os cada vez mais raros estabelecimentos comerciais que conseguiram resistir no centro histórico cerram as portas às dezoito horas, porque são vítimas de frequentes arrastões, com saques e roubos de celulares dos clientes. Pontos de taxi também ficam desertos a partir dessa hora. Taxistas, conforme dizem, são obrigados a abandonar seu ponto porque, assim que seu passageiro entra no veículo, é assaltado por um desses falsos moradores de rua. E, como durante o assalto, são por vezes chamados pelo nome, por já serem conhecidos dos meliantes, são colocados sob o constrangimento da falsa impressão de estarem em conluio com a prática criminosa.
Nos últimos vinte anos, todos os prefeitos paulistanos, especialmente durante as campanhas eleitorais, prometeram enfrentar o problema: Agora será o fim da cracolândia!
É o que sempre dizem. Mas até hoje só conseguiram provocar o aparecimento de novos pontos de venda e uso do crack e mais recentemente o espalhamento completo da atividade criminosa para toda a parte central da cidade. De fato, agora há usuários, e onde há usuários há fornecedores de drogas, na vizinhança próxima de todos os principais órgãos públicos municipais e estaduais, como prefeitura municipal, Secretaria da Segurança Pública do Estado, Ministério Público e Tribunal de Justiça.
E as autoridades fazem de conta de que tudo está normal.
É forçoso compreender que, se o comportamento dos usuários de droga se limitasse ao uso da droga, a recomendação seria mesmo de acolhimento e prestação de serviços de saúde pública. Entretanto, a partir do momento em que o usuário de droga, especialmente das drogas sintéticas mais pesadas, se torna delinquente, o tratamento a ele dispensado deve ser o mesmo destinado aos criminosos. Isso não significa que tenha que ir necessariamente para a cadeia, mas ao menos se sujeitar a medidas coercitivas para a concreta reparação dos danos causados às vítimas diretas de seus atos e à sociedade.
Acontece que, nessa anarquia generalizada, os delinquentes ainda usurpam a condição de quem realmente se encontra em estado de abandono, como o doente mental desamparado, a mãe de família que de repente se viu sozinha sem recursos para cuidar da prole, o pai de família que perdeu o emprego e não conseguiu mais colocação no escasso mercado de trabalho, sendo despejado do teto que alugava e não conseguiu mais pagar, entre outras diversas situações similares, merecedoras da solidariedade humana.
O certo é que, se situações diversas exigem tratamento distinto, ninguém pode ficar na rua, praça ou logradouro público como se dali fosse morador. Não existe, pois, morador de rua ou praça pública. Quem mora é o que fixa residência e, como se sabe, só fixa residência quem tem posse ou propriedade.
É que os espaços públicos não são de ninguém especificamente, mas de todos indistintamente. São bens de uso comum do povo, de modo que, em igual medida, todos têm o direito de usufruir, indo e vindo sem serem incomodados, assegurada a sua integridade física, se necessário com a proteção da força do Estado. E o exercício desse direito de cidadania não será possível se existirem pessoas que se achem donas exclusivas de determinado espaço público, como, por exemplo, certos cobradores de constrangedores e ilegais pedágios clandestinos, além de pessoas que armam barracas em calçadas e praças públicas como se dali fossem proprietários ou legítimos possuidores.
Não se pode esquecer que algumas dessas barracas, à noite, não passam de tocaia para o assalto de incautos pedestres.
Quem quer se estabelecer de forma permanente na rua, praça ou logradouro público, com qualquer atividade humana, econômica que seja, depende do preenchimento de requisitos legais e de formal permissão ou licença municipal, estadual ou federal, conforme o caso.
Onde estão as normas de postural municipal? Onde estão os agentes públicos municipais de administração e fiscalização da Prefeitura? Onde estão os responsáveis pela preservação do patrimônio e logradouros públicos? Onde estão os encarregados da expedição de licenças de ocupação e funcionamento dos espaços públicos e privados da cidade? Onde estão as autoridades da segurança pública, da saúde, da vigilância sanitária, da assistência social do Município e do Estado? Onde estão os Conselhos Tutelares?
Onde está o Ministério Público e o Judiciário, que não responsabilizam exemplarmente essas autoridades criminosamente omissas?
Que não venham as autoridades com o velho pretexto de que nada podem fazer para retirar essas pessoas das ruas e logradouros públicos, visto que qualquer medida de remoção compulsória, segundo alegam, configuraria desrespeito aos direitos humanos.
Não é verdade. Todos os direitos humanos devem ser garantidos pelo Estado e exercidos pelos cidadãos, como, por exemplo, a liberdade de ir e vir, nos termos e limites da lei. Portanto, o direito de ir e vir não exclui a privação da liberdade em caso da prática de delito cuja pena prevista em lei seja a prisão. Nenhuma Convenção Internacional de Defesa dos Humanos garante ao cidadão o direito de morar em lugar público sem a licença administrativa prevista nas leis do país signatário.
Na verdade, a ausência de direitos humanos está justamente no tratamento dispensado às pessoas em situação de rua, abandonadas pela sorte e pelo Estado que, para cumprir normas incorporadas na Constituição Federal por força da adesão a Convenções Internacionais de Defesa dos Direitos Humanos, tem o dever de garantir a todo ser humano, independentemente de sua ideologia, religião, origem ou qualquer outra condição, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a vida, a saúde, além da alimentação, trabalho, moradia, transporte, segurança e educação.
Em outros termos, agentes públicos, ao constatarem a existência de pessoas que se dizem moradores de rua devem a eles, em primeiro lugar, oferecer acolhimento, assistência da saúde pública e abrigo digno até que consiga, pelo próprio trabalho, o teto permanente, deixando bem claro, entretanto, que, caso recusem o abrigo fornecido pelo Estado, não serão tolerados naquele espaço público que, por ilusão, conveniência ou má-fé, pensam ser de sua exclusiva propriedade. E nesse caso devem as autoridades públicas adotar, em seguida, as medidas coercitivas necessárias para ali não permaneçam.
Do contrário, os grandes municípios brasileiros lamentavelmente não passarão de um salve-se quem puder, cidades sem lei, em que, à luz do dia, famílias inteiras, inclusive com suas crianças, continuarão em barracas improvisadas, infectas e inóspitas, sem a mínima interveniência de conselheiros tutelares e, pior, sem qualquer assistência eficaz do Estado, como se fossem animais numa selva a formar, no futuro próximo, feras indomáveis.
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