Samuel Braun *
O ano de 2018 começa com o debate eleitoral antecipando aquele que deve ser o pleito mais disputado e pulverizado desde 1989. As pré-candidaturas à Presidência proliferam e nomes que em outros momentos seriam impensáveis, dos mais diversos setores da sociedade, são postos e tratados como viáveis.
Como é da nossa tradição, prestamos demasiada atenção na disputa pelo principal cargo público eletivo e pouquíssima nas centenas de vagas no Parlamento. Após experimentarmos mais um impeachment e dois julgamentos de presidente da República pelo Congresso, parece imperioso dar maior foco na escolha daqueles que, no atual modelo de presidencialismo de coalizão, têm progressivamente assumido poder de ditar os rumos do país.
Se na disputa pela Presidência o principal movimento é apresentar-se como novo, como outsider da política, e tudo que isso pode significar (isenção dos acordos espúrios atuais, práticas eficientes do mercado, etc), algo semelhante vem ocorrendo nos debates para o Parlamento, embora ainda pouco repercutido pela mídia e com um potencial de impacto no resultado final da eleição bem menor que na disputa presidencial. Desde as eleições municipais de 2016 proliferam coletivos e movimentos pelo país focados em apresentar candidatos com práticas e ideias novas e, principalmente, candidaturas menos personalistas e mais colaborativas.
Leia também
A diversidade entre esses grupos é grande. A maioria busca escapar da dicotomia instalada no país desde a eleição de 2014, rejeitando rotular-se de esquerda ou de direita. Tentam aliar práticas e idéias econômicas de mercado, liberais, com um ideário de preocupação social e identitário das esquerdas. Eficiência e desigualdade são suas maiores preocupações, mas existem diferenças nas ênfases.
Alguns desses movimentos têm tido espaço na mídia, como o Agora!, por conta da adesão do apresentador Luciano Huck, especulado como possível candidato à Presidência. Ou mesmo o Renova BR, grupo formado por empresários e mobilizadores que pretende financiar a formação política de candidatos com ideias e práticas inovadoras, através de cursos e bolsas (recursos financeiros). Outros como Brasil21, Acredito e Transparência Bras il são formados por empresários, cientistas sociais e economistas e possuem laços com organizações do terceiro setor, como por exemplo a RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade). Todos priorizam a pauta da eficiência e combate à corrupção, sem buscar uma definição ideológica mais precisa.
Ainda nesse multiverso de coletivos, alguns outros propugnam posições políticas mais definidas. A Bancada Ativista e o Muitas já participaram das eleições de 2016 com sucesso, e se posicionam claramente no campo progressista. Em São Paulo, o Bancada Ativista lançou candidatos pelo Psol e pela Rede, com dinâmicas de campanha interativas e culminando com a eleição de Sâmia Bonfim, pelo Psol, para vereadora. Em Belo Horizonte o Muitas lançou dez candidatas pelo Psol, tendo eleito duas vereadoras: Áurea Carolina e Cida Falabella. Junto desses dois movimentos, mais locais, outros vêm se constituindo, como o Quero Prévias, Vamos, Democracia Colaborativa, etc., que pretendem dar um “selo” em candidaturas inovadoras em mais estados, com uma perspectiva assumidamente progressista. Da articulação de alguns desses e outros segmentos mais, populares e de periferia, está para ser lançado o NÓS, com a disruptiva perspectiva dos 99% (como foi com os Occupy).
Nos dias 8, 9 e 10 de dezembro muitos desses movimentos se reuniram em Belo Horizonte para trocar experiências, tanto sobre o que fizerem em 2016 quanto sobre o que têm feito agora para preparar a atuação na eleição deste ano. O nome do evento foi #Ocupa Política, e contou com rodas de debates e oficinas sobre temas e estratégias de como levar candidaturas participativas com alguma viabilidade nesse pleito. No mês anterior, em São Paulo e no Rio de Janeiro, aconteceram edições da Virada Política, evento parecido mas com o propósito maior de apresentar estes movimentos.
Aparentemente duas estratégias distintas caminham em paralelo entre esses grupos, respeitando em linhas gerais a divisão aqui proposta entre grupos mais progressistas e outros mais ao centro. Enquanto os grupos com ideário mais liberal apostam na formação de candidaturas através de cursos e recursos, para que estas apresentem propostas identificadas com tal pensamento e conduzam seu mandato com boas práticas de governança, inclusive formando conselho consultivo, os grupos identificados à esquerda apostam em candidaturas colaborativas ou coletivas e mandatos participativos, com propostas e votos sendo decididos em permanente sufrágio entre pessoas que se disponham a colaborar na legislatura.
Sobre esse último ponto, interessante diferenciar os tipos: colaborativas são candidaturas tais quais as levadas à frente pelo Bancada Ativista e o Muitas em 2016, com diversos candidatos que comungam as ações de campanha, compartilham recursos e mantêm um conjunto básico de ideias, embora com candidaturas individuais e temas específicos de cada um. Já a coletiva é um tipo de candidatura à semelhança da vencedora em Alto Paraíso, em Goiás, onde cinco pessoas disputaram uma mesma vaga a vereança na cidade goiana e irão se revezar no exercício do mandato em diferentes funções. Legalmente, no entanto, só uma pessoa pode ser registrada como candidata, e em caso de eleição, é ela que assume. O exercício coletivo do mandato depende da vontade do empossado e tem uma série de restrições legais.
Algumas diferenças entre os participantes de cada um dos tipos de grupos são visíveis. Além do ideário, a composição por gênero, raça e classe é relativamente distinta entre os grupos formados, por exemplo, pelo Renova, Agora! de um lado, e os formados por Bancada, Muitas e Nós de outro. No perfil dos selecionados na última etapa divulgada pelo Renova BR, 75% eram homens (embora aleguem pretender aumentar ainda em pelo menos 5% o número de mulheres). As lideranças são também praticamente todas brancas, como já ocorre na política partidária.
Não há dados disponíveis de sua composição de classe, mas as reuniões e debates desses grupos costumam se dar em bairros mais abastados e com pautas mais abstratas (embora, claro, importantes para uma solução mais geral para a sociedade). Essa tem sido uma tônica inclusive de partidos políticos de esquerda, que encontram maior dificuldade de penetrar nas regiões mais populares e acabam sendo estigmatizados. Já grupos como o Muitas tem praticamente 100% das candidaturas femininas, o Bancada teve três candidatos do movimento negro, de um total de oito, e o Nós tem pautado seus debates sobre candidaturas na e pela periferia, favela e subúrbio, com membros e pré-candidaturas dessas regiões.
Apesar dessas diferenças, todos esses grupos têm mantido constante diálogo, e não é incomum pessoas pertencerem a mais de um deles. O sentido comum é de renovação na representação e o desejo de furar as “bolhas” em que cada ativista vive, alcançando outros segmentos da sociedade e superando, ao menos na disputa pelo Legislativo, a polarização política do país. Porém, se entre esses grupos há um sentimento de companheirismo, a relação com movimentos como o Vem Pra Rua (VPR) e Movimento Brasil Livre (MBL) não é a mesma.
As pautas desses dois últimos grupos é mais identificada com o conservadorismo e as alianças que travam com partidos muito implicados em escândalos de corrupção (PSDB, DEM, etc), assim como a proximidade com figuras como Bolsonaro e a defesa, à distância, do governo de Donald Trump, tornam opostas as agendas políticas. A estratégia do MBL é criar figuras dirigentes, como Fernando Holiday e Kim Kataguiri, num modelo verticalizado que se assemelha mais com a questionada tradição dos partidos políticos. O Vem Pra Rua terá seu líder maior e idealizador como candidato e não estão claros os critérios que usarão para endossar outras candidaturas.
Com exceção desses grupos à direita, os demais têm como ponto pacífico não atrelar seus debates e ideais a uma candidatura presidencial. Um dos motivos é que pretendem disputar por diferentes partidos, que poderão apoiar candidatos majoritários distintos. Mas o motivo principal é que o intuito maior desses movimentos é reformar a representação nas casas legislativas, aproximando o representante do representado, e empregar menos energia em discussões mais abstratas sobre grandes nomes, suas virtudes e defeitos.
Essa disposição é ainda recebida com ressalvas pelos partidos. Se a ideia de candidatura independente, no modelo eleitoral atual, é um acordo entre um partido e um movimento/candidato, pelo qual o partido aceita ceder vaga na nominata para uma candidatura e o candidato aceita se lançar por aquele partido, mantendo o candidato sua plataforma de propostas intacta e aderindo aos princípios gerais ideológicos do partido, e vendo o partido parte de seus ideais expressos nesta candidatura, sem no entanto interferir nela, não é bem isso que os partidos tem de expectativa.
Alguns, em seu debates internos, desejam que os candidatos independentes apoiem os candidatos majoritários do partido e se abstenham de apoiar outros candidatos independentes de outros partidos, como é o caso do partido que cunhou em seu estatuto essa modalidade de candidatura, a Rede Sustentabilidade. No entanto, estas exigências desfiguram o que de independente pode existir na candidatura, transfigurando na já conhecida negociação de partidos para cooptar lideranças sociais.
Assim como pré-candidatos participam de diferentes movimentos, os movimentos também pretendem ter candidatos em diferentes partidos. Uma regra partidária que impeça o candidato de um determinado partido apoiar o candidato de outro partido, mas do mesmo movimento, obstrui o sentido coletivo dos movimentos e impõe um individualismo atávico. Estratégias como o “flertaço”, feito pelo Bancada Ativista em 2016, em que os candidatos do movimento, por diferentes partidos, conversavam juntos com eleitores, ficariam à margem, por exemplo, da resolução da Rede, que diz que “as candidaturas cidadãs proporcionais não podem (…) apoiar candidatos(as) adversários(as)”.
O Psol serviu de plataforma para o Muitas, em Belo Horizonte, e dez candidatas diferentes compartilharam um mesmo panfleto, cada qual apresentando suas propostas, como num cardápio para o eleitor, e a citação à candidatura majoritária foi exclusivamente aquela prevista em lei, tornando a dinâmica mais coletiva. Mas isso foi possível por estarem num mesmo partido. Partidos como o PSB, PDT e PPS são citados como possíveis plataformas para muitas dessas candidaturas e ainda não está certo quais deles aceitarão essa flexibilidade.
Estamos ainda distantes da eleição na percepção da população, mas esse é o período em que esses movimentos precisam preparar todas as suas ações a fim de, até o final de março, concretizar as filiações aos partidos pelos quais terão de disputar as eleições. Uma vez filiados, trarão dinâmicas imprevisíveis às conferências desses partidos, na sua maioria (salvo raras exceções) acostumados a pouca democracia e diversidade interna. Importante que tanto a imprensa quanto a população fiquem atentas ao desenrolar desses passos até a eleição.
* Samuel Braun é sociólogo, antropólogo e cientista politico. É mestrando de Ciência da Informação e Ciência Política.
<< “No rumo” – íntegra do artigo em que Huck afirma não ser candidato
Deixe um comentário