É, no mínimo, um contrassenso, uma contradição, uma justaposição de termos antípodas falar em “esquerda conservadora”. Ou, pra dizer o mínimo, um absurdo, não é?
Pois afirmo que… não. Não é. E continuo a usar neste artigo a ultrapassada nomenclatura “direita x esquerda” na falta de outra melhor, como escrevi no artigo anterior. E digo, com todas as letras, que não é contraditório nem absurdo falar em esquerda conservadora. Pois a esquerda, historicamente, tem tido um comportamento muito conservador, em certos casos, o que a levou, numa atitude francamente direitista, fascista e franquista, a celebrar esquerdistas autores das maiores atrocidades, como Stálin, mesmo depois de ter assassinado ou mandado para o exílio nos gulags milhões de seus compatriotas russos.
Para ficar aqui no quintal de Pindorama, basta recordar um pouco a evolução da comunicação político-eleitoral. Lá em 1870 Quintino Bocaiúva imprimiu o primeiro Manifesto Republicano. Mas o primeiro presidente republicano, o marechal Deodoro, chegou ao poder a bordo de um golpe de estado (você já ouviu falar em golpe, né?). Só depois, bem depois, as campanhas começaram. E com elas, os “santinhos”, as malas diretas, os cartazes colados nas paredes e as “preguinhas” (auto-adesivos) pra colar nas roupas. E de noite, é claro, os comícios nas praças, em cima de carrocerias de caminhões ou em palcos improvisados. A partir de 1922 (sim, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna!), as campanhas chegaram ao rádio, com debates e entrevistas. Começava a era dos jingles. A propósito, clique aqui pra conhecer um bocadinho do belo trabalho documental realizado pelo jornalista Franklin Martins sobre a história do Brasil contada pelos jingles.
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Em 1950 chegou a televisão. Os candidatos já podiam pagar inserções, mas nelas só podiam aparecer nomes, cargos almejados, números e partidos dos candidatos. E mais nadica de nadinha. Isto até 1989, com o fim da ditadura militar, quando a tv, que já vinha sendo usada nas campanhas, passou a protagonizá-las com a criação do Horário Eleitoral Gratuito.
Dos anos 80 pra cá, quando o horário gratuito passou a centralizar as campanhas, a esquerda insistia nos velhos, caros e surrados comícios, nos santinhos, nos cartazes, deixando em segundo plano as redes sociais, atualmente o filé das campanhas, que atraem mais público do que mil comícios. Enquanto isso a direita, muito mais profissional nessa área, começou a comer o mingau pelas beiradas. E a contratar profissionais para aproveitar ao máximo as potencialidades das campanhas cibernéticas. Enquanto isso a esquerda conservadora ainda patina e gasta tempo, dinheiro e esforço na preparação de programas para um horário eleitoral que exibe audiência pífia e grau mínimo de conquista de apoios. Já a direita, despudoradamente, em alguns casos até mesmo criminosamente, tem usado as redes para impulsionar suas candidaturas e sua ideologia. As campanhas, que haviam se profissionalizado lá nos anos 80 com a contratação dos “marqueteiros” da publicidade, agora se apropriou dos especialistas em redes digitais. Os antigos “marqueteiros”, os que acordaram para o novo mundo, tiveram de se reinventar.
PublicidadeA campanha que se iniciou dá bem a medida da diferença de efetividade nas ações da esquerda e da direita. E o melhor exemplo é o influencer Pablo Marçal (PRTB, sim, o partido do Levy Fidelix), à prefeitura de São Paulo.
Desenvolto e absolutamente solto nas redes sociais, Marçal já desbancou até mesmo o candidato Ricardo Nunes (MDB), que recebe apoio explícito de Bolsonaro. E já deixou pra trás usuários da mídia tradicional, como o apresentador José Luiz Datena (PSDB). É sabido que o sequestro da atenção e do apoio, nos dias atuais, como ensinam especialistas em redes digitais da direita como Steve Bannon, vem do uso despudorado de recursos como o escândalo, a vulgaridade, o grotesco e as ações mais bizarras. Com um discurso e uma postura de fácil compreensão, baseada no “contra tudo e contra todos”, Marçal não hesita em usar todos os recursos, lícitos e ilícitos, principalmente os ilícitos, que as plataformas digitais oferecem. E o resultado é que já concorre quase em pé de igualdade, segundo as pesquisas, com o candidato Guilherme Boulos (Psol). Nem mesmo uma condenação criminal pela prática de golpes digitais, ataques agressivos aos adversários, denúncias de associação com o crime organizado e o fato de se lixar pras regras eleitorais contribuem para seu rebaixamento. Pelo contrário. Esse conjunto de bizarrices, pra usar uma palavra suave, não afasta e sim consegue é seduzir parcela considerável do eleitorado, iludida pelo discurso simplista do “contra tudo e contra todos”. Claro que a esquerda não deve usar as armas criminosas dos ativistas de direita. Vade retro. Mas é possível, sim, fazer frente à avalanche de apelos grotescos começando pela ocupação dos espaços, hoje preenchidos em sua quase totalidade pelas mensagens da extrema direita. E pela propagação das mensagens do discurso esquerdista, direcionadas ao bem-estar social, à justiça, à importância da democracia, ao combate ao ódio fascista etc.
Até porque hoje, a esquerda conservadora continua que nem a Carolina da canção do Chico (“o tempo passou na janela e só Carolina não viu”). Se não voltar a ser esquerda, ou seja, progressista, ou seja, conectada com o futuro, daqui a pouco vai ter de conviver com um Milei tupiniquim. Vai, sim. E depois não vai adiantar nada chorar o leite derramado.
O mundo mudou. As guerras já não se fazem com espadas, mas com drones e torpedos lançados nas redes sociais. Como escrevi na letra de uma marchinha: “acorda gente, todo mundo, acorda povo / sai desse ovo, meu povo, sai desse ovo!”.
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