A crise da eleição venezuelana abre as portas para uma reflexão sobre a atualidade (ou desatualidade) da dicotomia direita x esquerda. A denominação permanece em uso muito mais por inércia do que por eficácia. Ainda que os estragos que causa sejam de tal ordem que estão a exigir ampla revisão. Separar opções ideológicas exclusivamente entre esquerda x direita ainda faz sentido? E nem estamos considerando as “alternativas” que se criaram para abrigar tendências menos radicais como centro-esquerda ou centro-direita. Referimo-nos à própria essência da divisão ideológica polarizante que se abrigou sob duas palavras que têm sua origem lá na Revolução Francesa (1789-1799).
Recordando: a burguesia, vale dizer os mais ricos, e as camadas mais baixas da sociedade instalaram uma assembleia constituinte para dotar a França de uma nova Constituição. O país vivia sob um regime monárquico. Quando os membros da Assembleia Nacional se reuniam, os “girondinos”, apoiadores do rei, integrantes da alta burguesia e do grande capital, sentavam-se à direita dele; e os simpatizantes da revolução, considerados radicais mais exaltados, aliados às classes trabalhadoras e aos camponeses, os “jacobinos”, sentavam-se à esquerda do monarca. Com a passagem do tempo, as palavras “esquerda” e “direita” passaram a designar genericamente “de direita” os conservadores e “de esquerda” os progressistas.
Leia também
Mas quando se observa, nos dias de hoje, o uso que vem sendo dado às palavras “esquerda” e “direita”, percebe-se o quanto a dicotomia desgastou-se. E vem sendo usada muito mais para justificar desmandos de autocratas. Não fosse assim, um regime visível e abertamente ditatorial, como o venezuelano, não se enquadraria sob o manto da “esquerda”. Mas Nicolás Maduro diz-se “de esquerda” embora praticamente enfeixe em suas mãos todos os poderes. Quando não os exerce diretamente, controla-os com mão de ferro. E sob a marca até hoje indecifrável de um tal regime “bolivarianista”, seja lá o que isto seja. Nada mais… à direita! Mas o rótulo é bom. E serve de escudo protetor para toda sorte de desmandos. Tal como a ditadura de feição stalinista totalitária da Coréia do Norte, pilotada por Kim Il-sung, que lidera o um dos países mais fechados do planeta e se sustenta por meio de um intenso culto à sua personalidade. Na Venezuela, Maduro abriga-se na memória revolucionária de Hugo Chávez, que iniciou o ciclo autoritário venezuelano tendo por base o tal “regime bolivarianista” (de Simón Bolivar, o Herói Libertador, que liderou a independência de vários países sul-americanos). Chávez se apropriou da imagem e do legado lendário e quase mitológico de Bolívar para construir o que denominou “República Bolivariana”, cujas bases ideológicas, políticas e econômicas até hoje são propositalmente obscuras. Funciona apenas – e muito bem – como símbolo, rótulo e emblema para o controle do poder. Venezuela e Coréia do Norte padecem de sérios problemas sociais, principalmente a fome, a miséria, o analfabetismo e a destinação de boa parte das riquezas nacionais para a classe militar, em troca do apoio que mantém seus líderes no poder. Em ambos, o que menos se observa é a preocupação social que deveria, obviamente, caracterizar regimes de esquerda.
Ora, ora. A esquerda entende que sobre toda propriedade particular pesa uma hipoteca social. Isto quando não defende abertamente o simples fim da propriedade privada. Define-se originalmente pela defesa da igualdade social e o combate às desigualdades, priorizando os mais carentes. Já a direita se autodefine como conservadora principalmente no campo econômico. Defende radicalmente o livre mercado, combate a interferência estatal e com isso promove a concentração de capital, mesmo à custa da miséria e da morte de seus concidadãos. É igualmente conservadora nas pautas de costumes (combate ao racismo, à homofobia etc.). Direitistas, em geral, são contra o aborto para vítimas de estupro (como se viu recentemente no congresso brasileiro). Estão associados a princípios religiosos ultra-conservadores, que não aceitam a união homossexual ou a igualdade de gênero.
Por tudo isso, vale uma reflexão sobre a questão original: ainda é possível usar a dicotomia semântica esquerda-direita? Bom lembrar que ela começou a entrar em xeque lá nos tempos de Stálin. Hoje, o rótulo serve apenas como anteparo confortável para caudilhos. Só para refrescar a memória, é bom lembrar o dirigente soviético Nikita Khrushchov, que denunciou as atrocidades cometidas por Stálin, a partir do Grande Expurgo entre 1936 e 1938, quando cerca de 15 mil pessoas foram assassinadas. Sem esquecer dos campos de trabalhos forçados, os Gulags. E o genocídio dos ucranianos. Alguns cálculos de estudiosos e historiadores garantem que as execuções sumárias somadas teriam provocado a morte de até 20 milhões de pessoas. Sim! 20… milhões! Olhando um pouquinho aqui pro nosso quintal latinoamericano, é bom não esquecer que, na recente “eleição” venezuelana, totalmente sem transparência, 24 pessoas morreram em confronto com as forças do governo, ocorreram mais de 2 mil prisões e as perseguições a opositores continuam até hoje. A principal oponente e candidata natural da oposição sequer teve a chance de concorrer ao pleito.
Mas Maduro se diz… de esquerda! Como igualmente Kim Jong-un. Tal como, lá atrás, Stálin se dizia. E, no comando absoluto da União Soviética, entronizou-se de 1920 a 1952 no poder central do país simplesmente acabando com as eleições, posição historicamente preferida pelos detentores do poder em ditaduras ditas de direita, como o salazarismo português, o nazismo alemão, o fascismo italiano, o franquismo espanhol e a própria ditadura militar brasileira.
Fica evidente que tornou-se obsoleta a divisão ideológica esquerda-direita. No mínimo, é preciso encontrar outra nomenclatura. Porque essa aí já deu o que tinha de dar.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário