A aprovação do voto distrital puro pela comissão especial da reforma política parece representar um avanço democrático. Coisíssima nenhuma. É um baita retrocesso. Se for referendada em plenário e convertida em lei, veremos a entronização definitiva dos caciques partidários – os dirigentes dos partidos – definindo quem pode e quem não pode se candidatar. Como os monarcas déspotas, escolherão os que irão viver e os que irão pra guilhotina. Nesse sistema ganha quem tem mais votos, logo, os caciques escolherão apenas quem tem grandes chances de se eleger. Adeus representantes de causas pouco populares mas importantíssimas como aborto, células-tronco, reforma agrária, combate à homofobia, direitos humanos e que-tais. Entraremos fogosamente na era da consagração das celebridades – cantores, apresentadores de rádio e TV, músicos, atores. Ou seja: quem consegue atrair mais votos será escolhido candidato. Seja ou não alfabetizado, como dizia um antigo comentarista político.
Voto proporcional foi criado em 1930
Criado com a revolução de 30, que eclodiu para ampliar a democracia brasileira, o voto proporcional foi instituído no código de 32 e pela primeira vez foi aplicado nas eleições de 33. Aí, houve o interregno do Estado Novo, que de “novo” não tinha pembas. Foi apenas a primeira grande ditadura brasileira, pilotada pelo caudilho Getúlio Vargas. O voto proporcional só ressurgiria em 1946, no bojo da onda democratizante que arejava a Europa e se espalhou aqui pelas bandas de Pindorama.
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Desafiado a explicar a complexidade do voto proporcional, produzi anos atrás pequena matéria na TV Câmara. Nela, utilizei o recurso dos vasos comunicantes. Coloquei alguns copos (cada um deles correspondendo a um candidato a deputado) com quantidades variadas de água, representando os votos de uma eleição proporcional. E pelo menos um desses copos estava cheio, significando que aquele candidato sozinho teria alcançado o chamado “quociente eleitoral”. E sabe o que é isso? Parece difícil, mas não é. Você toma o número total de votos de uma eleição e divide pelo número de vagas para deputado ou vereador. Este é o quociente eleitoral, número mínimo de votos necessários para um candidato se eleger. Um exemplo: aqui do DF, onde existem 8 deputados federais, se 800 mil pessoas votarem na eleição, o quociente eleitoral será de 100 mil votos, número mínimo para se eleger um deputado. Voltemos ao exemplo dos copos: já vimos que existe um deles cheio. Nesse caso, o candidato, atingido o quociente eleitoral, elegeu-se “sozinho”, sem ajuda do partido, como se diz. Mas, se pegarmos a água dos outros copos e formos despejando no segundo mais “votado”, quando ele encher terá sido atingido novamente o quociente eleitoral. Portanto, o segundo candidato mais votado estará eleito. Por essa razão diz-se que, no sistema proporcional, às vezes vota-se em Celso Russomano e elege-se Sérgio Reis, como ocorreu. Sérgio Reis teve uma votação abaixo do quociente, mas foi beneficiado pela sobra dos votos de Russomano e dos colegas do partido ou da coligação.
Um sistema minimamente justo
Isto é um defeito? Sim, porque todo mundo gostaria de saber precisamente quem ajudou a eleger. Ainda assim, é um sistema avançado, democrático e minimamente justo. Casos como os de Russomano, Tiririca e Dr. Enéas, campeões de votos que arrastaram outros candidatos de seu partido ou coligação não tão bem votados assim, são poucos. A gente conta nos dedos. Só servem para confirmar a regra. Sem contar que, no sistema proporcional, se não houvessem as distorções conhecidas no sistema eleitoral e político, os partidos seriam fortalecidos. Como? Ora, se sei que meu voto pode ir para outros candidatos de uma legenda ou coligação, vou tentar conhecer todos os candidatos. E o que defende aquele partido ou coligação. Se houver um candidato no partido ou coligação que não quero ver nem pintado, caio fora, mesmo que meu candidato preferido esteja lá. “Correr o risco de ajudar a eleger aquele cretino? Mas não voto é de jeito nenhum”, como diria a Ritinha com aquele sotaque paraense na novela “A Força do Querer”. Isso obrigaria os partidos a serem mais nítidos ideologicamente. E a escolherem melhor seus candidatos, excluindo aqueles sobre os quais restassem dúvidas de caráter ou de obediência ao Código Civil.
Democracia se faz com partidos fortes
É quase um bordão dos especialistas em ciência política: democracia se faz com partidos fortes. E é exatamente a fraqueza dos partidos um dos principais problemas do atual sistema político brasileiro. Situação que pode se agravar muito com a adoção do voto distrital, com o qual os manda-chuvas partidários vão deitar e rolar. Uma solução intermediária, já em funcionamento com sucesso em alguns países, é o voto distrital… misto. Significa que o eleitor votaria duas vezes – uma no candidato de sua preferência; outra, num partido ou coligação. Seria respeitada a vontade do eleitor. Ao mesmo tempo em que contemplaria uma disputa entre os partidos, cada um com seu programa, sua ideologia, sua bandeira. E em vez dos trejeitos de candidatos montados pelos marqueteiros, teriam de explicar como pensam acerca das principais questões nacionais/regionais.
O preço da irresponsabilidade
Pra piorar a decisão a favor do voto distrital puro, só uma outra, também tomada na comissão de reforma política: a de se criar um fundo eleitoral no valor de R$ 3,6 bilhões para financiar os partidos concorrentes nas eleições. Seria este o preço da democracia? Não: é o preço da irresponsabilidade com o dinheiro público, em plena crise. Mais ou menos como deixar a torneira aberta a noite inteira em tempos de racionamento d’água. No Brasil de hoje ninguém se elege sem aplicar recursos de milhões de reais. Só a título de comparação, em Portugal o atual presidente gastou pouco mais de 600 mil reais (convertendo o euro) pra se eleger. Nossas eleições são caras e permeáveis à manipulação por quem tem mais dinheiro. Tudo bem, as doações de empresas foram proibidas. Mas quem consegue controlar o dinheiro do dízimo das igrejas? Ou o dinheiro vivo arrecado diariamente nas roletas do transporte público? Isso pra ficar em dois exemplos que me ocorrem agora. Ou alguém tem a leve ilusão de que essa grana gigantesca não será carreada na direção das campanhas dos candidatos-padres/pastores ou para os candidatos apoiados pelo grande empresariado? Com um detalhe: é dinheiro limpo! Não é produto de corrupção! E agora?
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